[Lembrei-me de recuperar este texto que escrevi faz hoje um ano, para provar como nada muda se nós não tivermos força para isso,]Um auditório meio vazio luzes decadentes mas cadeiras confortáveis e uma senhora de meia-idade com uns óculos de massa com lentes grossas pendurados ao pescoço por uma corrente chega-se ao microfone e diz
- Bom dia
(congresso de medicina avançada)
e todas as pessoas no auditório ajeitam-se nas cadeiras
- Bem vindos a esta sessão e hoje como toda a gente sabe vamos ter aqui connosco um senhor doutor estrangeiro que nos vai falar de coisas extremamente interessantes
e pega nos óculos e põe-nos em cima do nariz e o mundo passa a ser nítido por causa de duas rodelas de plástico
- Esperemos nós que ele diga coisas extremamente interessantes
(diz ela)
Pelo dinheiro que vai receber até eu começava para aqui a dissertar sobre Nietzsche que até o próprio Nietzsche havia de se levantar e bater palmas
e ao dizer isto sente-se bem tosse para limpar a garganta e começa a ler
- Então pronto connosco agora vai estar o senhor doutor estrangeiro Kurt von Allein-Schlaffen
e estica o braço e no fim do braço está um homem que se levanta e se cruza com ela a caminho do palco e as cadeiras que estão vazias batem palmas e ele anda com pernas de madeira e a cada passo uma pancada de Molière e toda a gente se enche de respeito pelo homem
- Guten Morgen
diz o senhor doutor estrangeiro e as pessoas lembram-se que ele é estrangeiro e metem as esponjas dentro dos ouvidos e dentro das esponjas está uma senhora enfiada num metro cúbico de espuma nas paredes a traduzir o que o homem diz
- Bom dia
e com uma gravata vermelha e caspa nos ombros ele começa a falar
- Quero começar por fazer uma pergunta
e as senhoras de idade nas cadeiras da frente começam a mexer-se porque pensam que ele vai perguntar como é que se vai para a farmácia ou para o banco ou onde é que se pode tomar um café ali por perto porque há duas coisas que as senhoras de idade deviam poder fazer automaticamente quando chegam aos setenta anos
conduzir táxis e operar pessoas
há até uma senhora na primeira fila que foi um dia aviar uma receita de suplementos de cálcio para aquela doença dos buracos nos ossos
- Tenho os ossos que parecem bocados de queijo filhinho
e juntamente com os suplementos deram-lhe um doutoramento honoris causa em medicina
porque por estes dias só as pessoas que têm a mania é que ainda chamam àquilo osteoporose porque todo o mundo já chama buracos nos ossos
as pessoas que têm a mania e os do anúncio em que põem os artistas da televisão a beber leite a preto e branco
- Sabe que aquela da novela da noite fez aquele reclame da doença que eu tenho
diz a senhora de idade no autocarro enquanto demora sete minutos para se conseguir sentar e acabou de fracturar um osso só porque respirou com mais força
mas não é nada disso que o senhor doutor estrangeiro quer saber
- Posso começar por fazer uma pergunta?
esta não conta só começa a contar na próxima
- Porque é que antes de chorarmos sentimos uma comichão atrás do nariz?
e quando acaba de dizer estas palavras a senhora tradutora simultânea deixa de traduzir por alguns segundos até começar outra vez
- Sabem? pergunta o senhor doutor estrangeiro Chorar não é grande coisa
(olá gostaram do personagem que inventei para falar em vez de mim?)
Mas sempre é a melhor maneira de termos a certeza que aqueles senhores do anúncio da água que dizem que nós somos quase todos água não estão a mentir
e aqueles miúdos ali nas paragens a torcerem-se todos
e quando me ponho a pensar no tiago bettencourt que está para aqui aos berros e nas letras que ele escreveu e nas esponjas que não me conseguem sair dos ouvidos e também na outra do cris martins que diz
- Eu estou para aqui a olhar para ti mas tu não me ligas nenhuma mas tu por acaso sabes o quanto eu preciso de ti?
e se calhar não sabes mas depois de uma semana a saber que sou feito de água já não sei o que fazer mais e não me apetece viver depois de amanhã se não estiveres por perto
(note-se que hoje é dia oito de maio).
[Mudar ali onde diz 'depois de uma semana' para 'depois de um ano e uma semana' e está bastante preciso. RC]
ai ai...
[A verdade é que eu acidentalmente apaguei o comment e não sei se era relativo a este post ou ao mais recente. Por isso pede-se ao que me lixa a cabeça que tire esta dúvida e que já agora pare de me lixar a cabeça].