(Não consigo encontrar o meu tabaco, sei que o deixei algures, está sempre a acontecer-me isto, vou a qualquer sítio, pego noutra coisa qualquer e onde passa a estar outra coisa qualquer estava um maço de tabaco que eu deixo invariavelmente pousado seja onde for, onde raio o deixei desta vez, já procurei em todos os bolsos do casaco e em todos os bolsos das calças, já procurei outra vez em todos os bolsos do casaco, os de dentro e os de fora, e em todos os bolsos das calças, isto como se um maço de tabaco coubesse subtilmente num bolso das calças sem parecer em escroto torcido em forma de tijolo, no casaco também não está, quero lá saber agora das chaves do carro e das chaves de casa, se calhar ficou no carro, se calhar deixei-o em casa, quero lá saber agora do troco do café que trago no bolso, se calhar deixei-o ao balcão do café, quero lá saber se me sinto imbecil a remexer nos bolsos, sinto-me por acaso um bocadinho estúpido a ir pela rua a procurar novos bolsos onde nunca estiveram e um maço de tabaco que não sei onde existe, se é que continua a existir, passou agora por mim uma sujeita a fumar mas tinha cara de fumar dos fraquinhos, dos que fazem menos mal, tinha cara de fumar dos que fazem quase bem, dos que são vida em forma de tubo, menos mal é uma expressão tão anormal que nada gramaticalmente lhe serve, mas onde raio pus o tabaco, eu sei que ainda hoje de manhã fumei, a roupa cheira-me a fumo, a roupa cheira-me a fumo e a boca cheira-me a fumo, no bolso onde está a carteira não está, não está no bolso do telefone, vamos lá usar de método para tentar resolver isto, ora vejamos, quando foi a última vez que fumei hoje, foi concerteza de manhã, isso sim, mas quando, quando, não consigo, não me lembro da última vez que fumei, é o mesmo que perguntar quando foi a última vez que respirei ou quando foi a última vez que tossi, ou usei esta gravata, ou quando comprei o último maço de tabaco, espera aí este troco, isto é troco de tabaco, deixei-o às tantas onde o fui comprar, fui comprá-lo e não o trouxe, deixei-o lá, não era a primeira vez e não há-de ser a última, passou por mim agora alguém que fuma dos meus, disso tenho a certeza, fecho os olhos e respiro com um bocadinho mais de forma e tenho a certeza, não cheguei a ver quem era mas era concerteza feliz, porque raio não sei eu do meu tabaco, terei algum bolso furado que me tenha atirado o tabaco para os fundos do forro do casaco, olha um imbecil qualquer a espremer o forro do casaco do outro lado da rua, de que andará ele à procura, possivelmente das chaves, ou da carteira, provavelmente tem um buraco num bolso qualquer e alguma coisa lhe terá caído, deve ter sido isso quase de certeza, quase de certeza que foi isso porque o homem lá anda e lá continua a debruçar-se sobre o fundo do casaco, não está aqui, estão para aqui coisas pequenas, não consigo perceber o que são, são moedas talvez, paro de andar e encosto-me a uma parede qualquer, são moedas são, qual dos bolsos é que me está a mandar moedas para o forro do casaco, e mais, mais moedas, isto começa a ser parvo, qualquer dia desfaço o casaco e vou jantar fora a um sítio onde acidentalmente me flamejem esta gravata, ou vou despejar o casaco numa caixa de esmolas, tabaco é que não aparece, preciso dele e não há meio de aparecer, estou a chegar ao desespero que me levaria a atravessar a rua e ir comprar outro, mas calma, vamos ter calma, encosto-me, vamos pensar mais um pouco, vamos pensar no maço de tabaco, deixou de escarafunchar no casaco e continua apoiado numa parede, o homem, ainda não consegui perceber o que procura ele, possivelmente o telemóvel, o autocarro é que não aparece, que horas são isto que o autocarro não aparece, é uma menos vinte e cinco, possivelmente é do relógio que anda à procura, não, isso seria estúpido, tem cara de executivo ou de dono de uma empresa qualquer, tem cara de mexer em dinheiro, o homem, as pessoas que passam a vida a mexer em dinheiro enchem-se de rugas nos cantos da boca, estou de baixa, o autocarro não chega e eu estou de baixa, entope-se-me qualquer coisa no cérebro, caio no chão, e quando acordo estou já de baixa, e estou de baixa até me dizerem que já não estou, vou ver se calha de ser hoje, o médico disse-me que podia ser hoje, por isso vou ver se é hoje, e o homem continua ali, encostado, e o autocarro, uma menos vinte e dois, é que não chega, não sei o que se passa, não sei onde o deixei, não consigo lembrar-me, sei que quando saí para almoçar o trazia na mão, que horas são isto, quase uma, sei que saí era meio-dia e trazia-o na mão, entretanto almocei e agora não sei onde o deixei, agora é parvo voltar tudo para trás para o tentar encontrar, alguém já o guardou ou às tantas alguém já o fumou, aos dois cigarros que lhe restavam, tenho de ir comprar outro, não há mais nada a fazer, vou atravessar a rua e vou comprar outro, desencosto-me da parede, vou comprar outro, continuo a convencer-me disto e a dizê-lo baixinho porque me parece imbecil não continuar à procura, dois cigarros são dois cigarros e sempre são dez minutos da minha vida em que posso ser feliz, desencostou-se e voltou a encostar-se, o homem, não deve saber o que quer, provavelmente nem sequer sabe onde está porque as pessoas perdem-se nos bolsos e quando levantam a cabeça nem sabem já onde estão, espreitei para o fundo da rua e o autocarro continua a não aparecer, leva já ora uma menos vinte leva já dez minutos de atraso e a minha consulta é à uma e não é perto, é à uma e não é em vinte minutos que me ponho lá, enervo-me, outras pessoas que esperam enervam-se, começam a fumar, entope-me o cérebro e deixo de fumar, perguntou-me o médico na última consulta quantos fumava eu por dia, digo eu ao médico que um maço, às vezes dois, isto porque digo-lhe eu antes que de repente deixou de me apetecer fumar, e pergunta-me ele aquilo, e respondo-lhe eu, e ele próprio nem sabe o que me há-de dizer porque deve ser coisa que eles não estudam lá na escola de se fazerem médicos, e pergunta-me ele mas nem vontade lhe dá e eu digo que não, que quando acordei e já estava de baixa perguntei pelos meus filhos e depois perguntei pela minha mulher e quando chegou a vez de perguntar pelos meus charutos diz a minha mulher que nem sabia o que achar, que chamou o médico que estava de plantão e lhe disse que alguma coisa deve ter ficado mal, que lhe visse o marido e que lhe dissesse tudo fosse o que fosse, mas o dito médico diz-lhe que não lhe parece que nada esteja mal, e daí estar-lhe eu a perguntar agora porque entretanto esperei que a vontade me voltasse e não voltou, e entretanto pode ser hoje que me levantam a baixa e ainda não me dá para isso, não sei, não sei onde os pus, definitivamente, vou ter de ir comprar um maço, vou comprar dois, vou comprar um e vou comprar outro para quando perder o um, e vice-versa, e quem é que se fica a rir agora, quem é, sou eu, obviamente que sou eu, pronto, desencostou-se da parede, o homem, e atravessa a rua cheio de certeza nos pés, onde vai ele, vai à tabacaria, pronto, era do tabaco que ele andava à procura, e olha a mim não me dá para isso, entope-me o cérebro e não me dá para isso, calha bem o imbecil ser o tabaco que lhe falta, e calha bem chegar o autocarro, uma menos um quarto, nunca mais me ponho lá a tempo, nunca mais volto a perder o tabaco, nunca mais.
RC)
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