Se mo permitem, gostaria esta tarde de começar por dizer que não sou um homem em termos. A única coisa que fiz que se pode dizer que foi de homem em termos foi quando fiz o meu filho de pé contra uma parede.
Toda a vida tive os pés pequenos. Sempre fui continuadamente gozado porque nunca me rebentou a pele de borbulhas e de pêlos tortos, porque nunca os olhos se me sujaram, nem o cabelo me engrossou em sítios e me começou a cair noutros. Foi por isso com grande estranheza que recebi uma carta em que me pediam que viesse aqui hoje e vos ensinasse definitivos a fazerem-se homens, e a fazê-lo de tal maneira que nunca mais ninguém aqui tivesse de vir para vos refazer homens. O que quer que eu dissesse
(a carta não era específica nesse ponto, nem tão-pouco reguladora ou doutrinária)
tinha de fazer com que vos nascessem barbas de um dia para o outro, e que vos engrossassem os testículos e as cordas que fazem a voz, e tinha de vos entulhar tanto medo nas bordas do corpo que a única hipótese vos fosse escavacar nos fundos dos braços pelos músculos de resolver as coisas à pancada. A carta era, aliás, muito de repetitiva e apavorada, e demorava-se enfim a tentar justificar esta súbita necessidade imperativa com a história mais ou menos detalhada de dois de vocês que acharam bem fazerem-se homens um com o outro.
(
risos)
Lembrei-me imediatamente de uma história semelhante que se passou aqui era eu cá aluno. Também então, enquanto os outros rapazes se cresciam homens pelos corredores, e comiam com os dois lados da boca, e se entesavam de rigidez nos braços e nos sítios dos ombros, também então dois alunos desta academia se embrulhavam em, e penso que chegou a ser este o fraseamento utilizado
(pelo menos nas filas do refeitório e nos lugares menos sujos de luz)
se embrulhavam em barulhentos atanços e em nós positivamente repuxados, tenho quase a certeza de ser isto o que se dizia
(sempre achei deliciosamente cruéis estas expressões, e tão violentamente cheias de verdade)
que desde o reitor aos homens mais pequeninos, os de mudarem lâmpadas que se encontrem fundidas, toda a academia se mastigava e se engolia de medo. Não devia haver definitivamente gente desta, dizia-se,
– Aqui
completava uma mão cheia de laca, e toda a gente subitamente se contentava que
– Sim, aqui
não crescesse gente dessa, e que lá fora era outra coisa, mas mesmo sendo outra coisa, decretou o reitor, não precisava inerentemente de ser uma badalhoquice sem tamanho, e terá então levado a mão à boca e ter-se-á engolido em seco. Esta conversa do quadro directivo, ou a narração bíblica dela pelo menos, apesar de ter sido milagreiramente excluída das actas
(ver janeiro - março mil novecentos e sessenta e três)
depressa se desdobrou pelos dormitórios, e debaixo das camas, e a cada cambalhota que dava pelas escadas abaixo, das camaratas dos finalistas às dos alunos novos, cada vez mais se atafulhava de sobrancelhas, e de ameaças de catarro, e cada vez mais os alunos em questão se colavam de unhas à parede como musgo e retorcidamente cresciam de pilas, e depois encolhiam outra vez. Como é óbvio, foi imediatamente montada, por péssima de escolhida a palavra, uma comissão de purificação moral, disse a todos o reitor em reunião extraordinária, cujas principais linhas de acção seriam, um, isolar quanto antes os alunos em questão
(recordo vagamente ter sido usada por então a palavra pecadores),
e dois, iniciá-los de imediato num processo de limpeza moral e de reformatação física e espiritual, durante o qual ficariam ao cuidado do capelão em duas celas
(foi celas a palavra utilizada)
obviamente individuais onde passariam metade do dia a pedir perdão a deus pelos pecados cometidos e a outra metade do dia a ver, e a forçosamente gostar muito, acrescentou o reitor, fotografias de mulheres nuas. Deu em nada isto : meses depois tinha voltado a normalidade dos berros abafados no quarto de arrumos
(violentamente verdade)
e os alunos que eram de si direitos continuavam direitos. Enquanto não aparecer mais gente desta, terá dito o reitor numa das reuniões mensais
(ver outubro - dezembro mil novecentos e sessenta e três)
pode dizer-se que temos a situação afinal controlada. Um dos alunos em questão, aliás, chegou a ir uma vez
(uma só)
com uma rapariga para o quarto de arrumos
(pedira-lhe o outro, estava escuro e ele tinha, para todos os efeitos, os olhos fechados, e a reitoria abrira-lhes vagas para que os isolassem e os lambessem direitos pelas cabeças das pilas)
mas foi uma vez, e o outro também uma só, e cedo se perceberam de volta aos atanços, e depressa outra vez se arranharam as paredes continuadamente de musgo.
(
pausa)
Não sei se estarei a ser eficaz como dizia a carta que fosse.
(
pausa)
De qualquer modo só na cerimónia oficial e solene de fim desse ano
(junho o dezasseis mil novecentos e sessenta e quatro)
estava toda a gente com a cara de festa, e o chapéu de oficialmente saber coisas, e os alunos em questão, um que estavam ao lado do outro, deram-se as mãos pelo meio das capas
(não sei aliás porque me escolheram a mim para vir aqui hoje),
as caras de festa sentiam-se quentes nos meios das mãos, e nos olhos a academia pela última vez
(escolheram-me a mim porque tenho livros escritos em várias estantes do estrangeiro?),
e quando chegou a altura dos louvores, e de atirar os chapéus ao ar
(escolheram-me a mim porque recebi prémios por fazer as coisas bem?),
os alunos em questão levantaram as mãos pelo meio dos chapéus e da embrulhada de gritos, e conseguiram, não se sabe muito bem como, porque toda a academia parou, parar toda a academia, os louvores ficaram-se no meio do ar, o reitor procurava os olhos no chão, e eu não conseguia ver nada, olhava só a ponta do meu braço
(ou escolheram-me a mim perversamente porque era eu em sessenta e quatro?)
deixar de ser minha
(porque éramos nós em sessenta e quatro?)
(
pausa)
De qualquer modo pediram-me que vos dissesse aos dois que se deixem disso
(vocês os dois),
desatem as mãos até amanhã, porque amanhã é sempre sessenta e quatro.
Acaba aqui a lição.
RC
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