(O cangalheiro tinha-se esquecido da fita métrica e resolveu medir o defunto manualmente. Foi então que)
se arrastou uma mulher pela porta
- O que é que ele está a fazer ó mãe venha cá depressa ai credo
começaram os gritos a agarrar-se aos cantos das paredes
- Alguém que lhe assente dois pares de estalos mais um valha-me o santíssimo ó mãe que não há respeito por ninguém
e dos rodapés parecia sair gente em guinchos concordantes de rato
- O que é que foi mas o que é que se passa mas o que foi o que foi?
e o que é que foi de facto, porque o cangalheiro lambia já a parede com as costas como se tentasse entrar pelo estuque
e o que é que se passa de facto, porque nem as mãos vazias do cangalheiro nem os olhos abertos de perguntas conseguiam calar a mulher
- Ó mãe corra cá ai pela saúde do paizinho que deus o tenha valham-me os santos todos que há
e os santos todos que há olhavam uns para os outros como toda a gente na sala, e mesmo a própria sala se encostou de cara escondida num canto
- Mas o que é que ela tem
- Sei lá o que é que ela tem
- Mas então o que é que ela tem?
- Não sei
- Mas
e as vozes misturavam-se de timbres contra o tecto
- Ó mãe ó mãe ai ó mãe
continuava a mulher por trás dos olhos fechados de pesadíssimos portões de ferro, e ia fazendo por acrescentar aos berros que
- Já não há respeito por nada por nada
e que
- Um homem tão sério que o paizinho era
e que
- Nem eu deixo que me façam coisas destas
e ai credo que
- A ver deixar deixo mas não gosto nem um bocadinho
e em vez de um ponto final ou uma vírgula vinha mais uma conjugação de choro no presente em todos os pretéritos e no futuro e pela fila soluçada de
- Se se se se se se se
também o condicional das muitas hipóteses, como os deltas dos rios ou os ramos das árvores
ou então era só o mesmo choro sempre reciclado e soluçado sempre outra vez
- Eu não fiz nada eu juro que não fiz nada
- O que é que você fez?
- Eu não fiz nada eu juro que não fiz nada
- Ai o malcriadão
- O que é que você fez?
- Nada eu não fiz nada
os candeeiros que estavam acesos faziam por tudo para não partir, o vidro segurava os tendões pelos dentes
- Aaaaiiiii
e quase não conseguia, o pó do cangalheiro quase se desprendia do fato
- Laura laura abre os olhos rapariga
- O malcriadão o filho da
- Laura
- O
- Laura
- O grande
- Laura
e do outro lado da sala, como um grande espelho que pára o tempo para poder cair majestosamente ao chão, voou um estalo
- Slap
e mão deixou de doer, deixou de borbulhar de sangue, pegou num papel do bolso amarrotado das calças, escrevinhou qualquer coisa com o lápis que devolveu à orelha e disse, pelos nós dos dedos, de dentro do pano
- Um metro e setenta e seis
antes de ajeitar a boina no sítio com um Boa tarde.
RC
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