(Texto do dia. Desculpem lá não ter as referências bibliográficas. O livro chama-se
Do Habitar e o texto é do Raios-Não-É-Que-Ele-Também-Escreve-Bem?-Mestre Álvaro Siza Vieira
[pp104-105].)
nenhum aspirador restitui a transparência das águas ou suga as patas dos insectos, finas como cabelo. ¶ O granito das lajes ou das calçadas cobre-se de perigosíssimo limo, o verniz escurece, películas de tinta desprendem-se e põem a descoberto os nós de uma madeira reduzida à capa. Qualquer dedo de anciã pode furar os caixilhos, os vidros estão partidos, caiu o betume, o silicone desprende-se das superfícies, há mofo nos armários e nas gavetas, as baratas resistem aos químicos. Sempre terminou a graxa quando procuramos a lata necessária, os tacos descolam, desprendem-se os azulejos, primeiro um, logo a parede inteira. ¶ Por aí fora. ¶ Viver numa casa, numa casa autêntica, é oficio a tempo inteiro. O dono da casa é simultaneamente bombeiro de serviço (as casas ardem constantemente, ou inundam-se ou o gás escapa-se sem ruído, em geral explode); é um enfermeiro (já viram as lascas de madeira do corrimão cravando-se fundo no sabugo das unhas?); é um nadador-salvador; domina todas as artes e profissões, é especialista em fisica, em química, é jurista ou não sobrevive. É telefonista de serviço e recepcionista, telefona a cada momento, procurando picheleiros, carpinteiros, trolhas, electricistas, e logo lhes abre a porta de entrada, ou a de serviço, acompanhando-os com subserviência; pois deles depende, embora não impeça a necessidade de uma oficina completa, a qual igualmente se vai degradando. E então é necessário afiar lâminas, comprar acessórios, olear, rearrumar; desumidificar; de imediato avaria o desumidificador, e atrás o ar condicionado, as bombas de calor. ¶ Nada contudo ultrapassa a tortura dos livros que se movem misteriosa e autonomamente, desarrumando-se de propósito, atraindo pó com as suas lombadas e a sua espessura magnética. O pó penetra no bordo superior das folhas, pequeníssimos bichos comem-nas com ruído indescritível; as folhas grudam-se, o couro mancha, pingos de água saídos de vasos com flores prestes a morrer escorrem sobre as gravuras, atravessam as telas em furioso processo de dissolução. O capacho da porta de entrada desfaz-se e há um sulco profundo na madeira, os pêlos das piaçabas desprendem-se, partem-se objectos preciosos, as tábuas das mesas e as dos móveis abrem-se em estalidos aterradores, não funciona o autoclismo, o fogão enche-se de fuligem - qualquer dia arde - na cristaleira partem-se os copos da bisavó, rebentam as garrafas de vinho verde a que um quase nada de açúcar dá vida, saltam as rolhas, ou apodrecem, perde qualidade exactamente a colheita mais apreciada. ¶ Quando pela primeira vez não é substituída de imediato uma lâmpada fundida toda a casa perde a luz, o que invariavelmente acontece ao sábado, ao mesmo tempo que rebenta um pneu do carro disponível. ¶ Por isso considero heróico possuir, manter e renovar uma casa. Em minha opinião deveria existir a Ordem dos Curadores de Casas e todos os anos atribuía a respectiva comenda e um elevado prémio pecuniário. ¶ Mas quando esse esforço de manutenção não é aparente, quando o saudável cheiro a cera de uma casa, por outro lado bem ventilada, se mistura com o perfume das flores do jardim, e quando nelas nós - visitantes irresponsávelmente pouco atentos aos instantes de felicidade - nos sentimos felizes, esquecendo as nossas angústias de nómadas bárbaros, então a única medalha possível é a da gratidão, do silencioso aplauso; um momento de paragem, olhando em volta, mergulhando na atmosfera doirada de um interior de Outono, ao fim do dia.
andava eu por aqui a cuscar, qd me deparo com um texto com sinais de paragrafo. tinha q comentar: o meu prof utiliza este simbolozinho nas paginações dele... coisas q ficam mal fazer igual!!!