era uma vez havia um país (I)


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Posso interessar-vos numa espécie de ensaio sobre cinema dos Balcãs (em três partes)?

A ideia de Europa esconde-se permanentemente debaixo dos pés, debaixo das ruas, troca-se às mesas dos cafés, debruça-se das pontes, mas sente-se continuamente. Encontramo-nos todos convencidos de haver uma identidade comum na Europa, de nos sentirmos sempre em casa onde quer que estejamos, de o frio de Londres ser o nosso frio e de as pedras de Roma nos terem saído do corpo, de o Eixample não nos doer nos pés e de as ruas de Paris nos serem decalcadas das veias. E no entanto, a Europa há-de ser sempre o nosso corpo que não cresce mais, que se atrapalhou inevitavelmente de pele, e ao qual falta chão. Só no fim do séc. XX nos vimos confrontados com esse problema. Durante séculos contornámos essa necessidade de sermos mais espalhando a tal ideia de Europa pelos outros continentes, procurando desenterrar sempre mais corpo onde pudéssemos ser, mas sempre as colónias se seguraram apenas pela sua própria força da terra, porque o projecto de uma Nova Europa diluía-se enquanto seguia levado nos barcos, e depois chegava-se à savana e ele não cabia no chão, e nem os indígenas o conseguiam encaixar neles mesmos e nas famílias e na maneira como duravam e sempre tinham durado. As colónias europeias sempre se fizeram apesar dos nativos, e sempre foram por isso levantadas por pessoas que nada sabiam do chão. Quando fomos obrigados a devolver-lhes a terra, encontrámo-nos encolhidos de volta no mesmo velho corpo, e subitamente não lhe cabíamos todos. As nações multiplicavam-se, e encostavam paredes, e as pátrias enchiam-se agora de pessoas que não lhe eram, e as pessoas que lhe eram erravam continuamente à procura de chão.
Como diz Theo Angelopoulos, “a minha única casa é ao lado de alguém que conduz um carro que parte”. Há em todos os europeus uma necessidade inata de andar continuadamente, e de esperar encontrar eventualmente o chão que nos tiraram debaixo dos pés, talvez porque todos os caminhos darão sempre inevitavelmente à pátria onde já vivemos uma vez, e porque nenhum de nós aprendeu nunca a ser sem um braço de raiz. A identidade prende-se ao solo, e por isso combinamos todos a sensação de estarmos sempre em casa, onde quer que seja Europa, e de estarmos continuamente longe de casa, desatados da terra, e errantes. Somos europeus porque nos perdemos dentro de casa, porque sempre cá vivemos e sempre desconhecemos os muros. É a perenidade das paredes que não sabemos. É as paredes serem mais da memória do que de pedra, e lembrarmo-las todos como no-las ensinaram. Cada nação levanta então as suas paredes, incorpóreas, e cada pessoa promete-se não as cruzar mas acaba-se sempre do outro lado, onde continua a Europa, e cada pessoa leva as suas próprias paredes nas fronteiras do corpo. Cada pessoa tem a sua lembrança de país.
Se as fronteiras são da memória, o chão europeu risca-se de todas as memórias de todas as pessoas, e o problema dos limites da Europa é um problema dos limites da memória. Há, por isso, tantas Europas como europeus, e uma pátria só deixa de ser quando morre a última pessoa que lhe viveu, que a manteve levantada, e que a lembrou sempre que se estendia do outro lado da montanha, e por onde segue o rio, e debaixo dos pés. Só assim se percebe a eterna identidade da Europa e o ela ser infinitamente desdobrada, e só assim se percebe a multiplicação dos Balcãs. A memória, pelo contrário, não é inata. Pode impor-se facilmente, seja pela força das armas ou pela urgência das ideias. Pouco é preciso para que uma coisa que sempre foi deixe de o ser, e é talvez por essa identidade estilhaçada que a elasticidade do chão lhe permita ser o país que as pessoas lembrem que seja, e que novas pátrias acabem por ser a única que sempre existiu e aquela que nunca se quis que existisse.
O cinema desenha forçosamente países que se regem por outras regras, que se permitem incompletos, incoerentes, esquissados por poucas pessoas e por isso eternamente falíveis. São países pequenos, da memória só de quem os escreve, e por isso sem memória. Mas o que lhes falta em tempo enche-se de serem obrigatoriamente eficazes a fingir esse tempo. E isso vê-se substancialmente mais urgente quando se desenham países em guerra, países que todos os dias esquecem o tempo que têm e se tentam fazer todos os dias de novo. Os três filmes que pudemos ver representam três desenhos de guerra inevitavelmente diferentes porque foram três pessoas inevitavelmente diferentes quem os construíram. RC


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01|dezembro|2006

The many faces of robert webb.
Isso do ricardinho acabou.

(Rufus Wainwright | Rules and Regulations
> from Release the Stars)



A ler Frost de Thomas Bernhard e ouvir e a ver coisas que se fôssemos aqui a pô-las todas havíamos de chegar atrasados a sítios onde temos horas para chegar.

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