Soprava um vento de vai tudo pelos ares na escala de beaufort. O mar estava um desarrumo de ondas, o céu era uma nuvem só, e o chão respirava de chuva. Desde que há tempo que não estava um tempo tão estúpido como estava no dia em que o Presidente do Comité para se Decidir que Tempo é que Está se chegou à frente e disse
― Já chega
disse ele, e ainda aproveitou para acrescentar que
― isto de estar mau tempo está aqui está a fornicar-me com os nervos
já se sabe o que é que o mau tempo faz ao vocabulário das pessoas
― todos os dias vem alguém ter comigo a queixar-se que de ano para ano está cada vez pior e eu
ele
― na qualidade de pessoa que decide acho que é o meu dever comunicar a toda a gente que o tempo que está acabou-se
as árvores pararam de abanar por um instante
― a partir de hoje e durante o tempo que me apetecer vai acontecer que eu
ele
― vou pegar no tempo que está e vou trocar tudo
a chuva tropeçou-se a meio do caminho
― chega
não sabia se havia de cair o resto ou o que é que havia de fazer
― há gente que lhes neva em cima o ano todo e há gente que o ano lhes é um sol só
apesar do irritado das frases estavam as pessoas a ouvi-lo e a dar-lhe razão
― e isso quer me parecer que não tem jeito nenhum
porque a verdade é que ele tinha de facto razão
― por isso é só para avisar que se amanhã acordarem e estiver tudo mudado, não vale a pena ninguém vir com coisas para cima de mim que quem manda sou eu
ele
― um bem-haja muito grande
e não disse mais nada, ajeitou o cachecol no sítio, engoliu-se pelas golas do casaco, fechou o frio do lado de fora e entrou outra vez no edifício onde estava a sala de tomar decisões, que tinha um mapa do mundo do mundo todo e uma série de ponteiros e canetas que esticam e outras coisas para apontar, não fosse dar-se o caso de ser preciso indicar qualquer sítio lá longe ou muito em cima onde já não se chega com os dedos faça-se a força que se fizer. A história do tempo que está desde que há Terra conta-se em meia dúzia de linhas, visto que houve pelo menos para aí umas quatro vezes ―dizem as pessoas de mais idade― em que isto estava impossível com o frio que era, o planeta era um cubo de gelo só ―e se não era é porque euclides não deixava―, mas depois lá derreteu tudo, o gelo encolheu-se só lá na parte de cima e na parte de baixo, o resto eram sítios onde afinal até se podia estar, e se alguém perguntar em que ponto é que nos temos agora dizem os cientistas que pelos vistos estamos ainda a descongelar da última vez, e que mais ano menos ano isto fica no ponto. No entanto há que não esquecer que os cientistas do tempo que está são a mesma gente que pegou nas nuvens do céu e lhes deu aqueles nomes todos esquisitos conforme o aspecto e dependendo de se elas se têm acima ou abaixo dos pássaros e se se apresentam mais ao alto numa espécie de amontoado ou não, o que faz com que se possa facilmente dizer e sem arriscar muito que a meteorologia é uma das ciências de arranjar nomes para coisas que não precisam de nomes. Depois há ainda que considerar que há anos que calham mais quentes e outros que calham mais frios, que a chuva quando cai é geralmente de cima e que um dia de sol ―parecendo que não― é todos os dias, e qualquer outro comentário sobre o tempo que está é tão absolutamente aleatório e tão empírico na sua demonstração que vir de repente alguém mudar tudo de uma ponta à outra podia espontaneamente acontecer mesmo que não viesse de repente ninguém mudar tudo de uma ponta à outra, apesar de desta vez
― Bom dia
ter havido de facto gente por trás disto
― eu e a minha equipa de decidir o tempo que está estivemos reunidos toda a noite a pensar neste assunto e quer me parecer que chegámos a uma solução que não está nada mal não senhor
aparentemente estava tudo na mesma quando se olhava pelas janelas, o Presidente do Tempo que Está escusava-se no entanto à gabardina apesar da chuvarada que tombava lá fora e por isso começaram todos a torcer-se pelos narizes
― deixem-me então explicar como é que correram os trabalhos
disse ele
― e o que é que nós resolvemos
um encontrão nos óculos que escorregavam, dois rearranjos na gravata e três relampejos de tosse
― como já se devem ter apercebido todos o tempo que está não é igual em todo o lado
atrás dele alinhavam-se uma mão e meia de sujeitos
― e além disso nem sequer é igual de um dia para o outro e tanto isto como a outra coisa que eu disse antes já não é de agora
deles só se sabia que eram cientistas do tempo que está e que se tinham todos engelhados de sono, e pelas caras que levavam postas dava nitidamente para ver que a noite tinha sido uma sessão de intensa reflexão e provavelmente cheia de cálculos e assim, como são aliás de uma forma geral as coisas que os cientistas fazem e que depois enfeitam com contas estranhas para ninguém ter coragem de discordar
― eu pedia que me ligassem o projector para eu poder mostrar alguns dos resultados a que chegámos
um dos cientistas do tempo que está abalou da linha para ir ligar o aparelho, e num botão ligou-se na parede uma luz cheia de números
― obrigado sven
disse ele
― e como dá para ver pelos valores e principalmente por aqueles que têm um menos atrás
diapositivos seis sete e oito, desdobramentos insuportáveis dos expoentes de lyapunov e depois dez e onze
― o que se pode dizer e com alguma segurança é que o tempo que está é de uma forma global uma trapalhada e por isso deixámo-nos de contas e decidimos abordar o problema de outra maneira
um dos cientistas do tempo que está desligou o aparelho
― obrigado sven
disse ele
― a propósito permitam-me que vos apresente o meu colega o doutor sven ødegård que é chefe do departamento da ciência do tempo que está da universidade de oslo
a cabeça de cabelo em tons de muito claro do sujeito apontava de facto para isso
― além de ser uma das pessoas que mais percebe destas matérias
estava claramente a passar-lhe a mão pelo pêlo
― e além de ter escrito aquele que eu tenho para mim como o mais definitivo ensaio sobre a questão da física de nuvens
e ele a gostar
― foi também pode dizer-se o verdadeiro impulsionador disto novo que aí vem por isso uma grande salva de palmas
a sala ensaiou algum entusiasmo
― eu acho até que era melhor ser ele a explicar o que é que vai acontecer e já agora a fazê-lo com o máximo de detalhe
olhou para trás, com a cabeça fez sinal ao doutor cientista do tempo que está que se chegasse à frente, a medo era vê-lo deixar a linha e aproximar-se do microfone, nunca ninguém tinha visto este sujeito na vida e daí tirarem-se-lhe o maior número de fotografias possível, era potencialmente alguém importante e se não era passava a ser, o senhor doutor estrangeiro defendia-se das luzes com uma mão enorme, todo ele era aliás muito grande mas os flashes encolhiam-no tão pequenino, e quando finalmente se teve ao lado do Presidente do Tempo que Está, que lhe apertou a mão numa macacada de protocolo e sempre a gozar com o povo das máquinas, a cara do cientista finalmente abriu-se em duas, a coluna das costas esticou-se, e o colega chefe só teve tempo de dizer
― por isso qualquer pergunta que tenham dirijam-na aqui ao doutor sven
aplicou-lhe uma palmada nas costas
― que eu infelizmente vou ter de me ausentar
olhou para o relógio
― já
e apertou mais uma vez a mão ao doutor estrangeiro, despediu-se com a cabeça do resto da equipa, e com dois passos de cada vez pôs-se num segundo na porta, olhou para o projecto de dilúvio que se experimentava lá fora, e o aconteceu depois disso pouca gente percebeu, mas quem diz que percebeu diz que o que se passou foi que ele tirou do fundo do bolso uma das mãos, a direita parece ter sido, desempoeirou a inércia da dita com uma ginástica de tendões, olhou para ela como se contasse os dedos, e às tantas satisfeito com a soma esticou o braço acima do corpo, parou cinco segundos quieto, e produziu um estalido de dedos que só não foi menos dramático porque à custa dele a chuva que caía lá fora deixou de cair, esfumaram-se as nuvens do tecto, e mesmo a água que estava no chão parece que veio o sol e num instante a engoliu toda, a verdade é que estivesse a arca quase pronta e tinha sido um desperdiçar tolo de madeira, e quando viu que o tempo que estava se tinha finalmente em termos abriu a porta e saiu sem sequer olhar para trás, de tal maneira que na sala ninguém arriscou reagir fosse como fosse, ou pelo menos até chegarem à conclusão que a maneira conveniente de reagir era provavelmente entulhar o sven de perguntas, que a única coisa que conseguiu dizer foi
― Um de cada vez se fazem o favor
e se o objectivo era calá-los a todos então fiasco para o objectivo, a sala continuava numa atrapalhação de perguntas mal feitas, e daí mudança de estratégia
― afinal eu vou falar antes e depois fazem as perguntas que quiserem
a sala queria lá saber o que ele estava a dizer
― está bem assim?
a sala continuava a preferir o sistema das perguntas porque mais facilmente fica a pessoa que responde toda trocada ―e nada resolve melhor uma questão que duas respostas diferentes―,
― estamos bem assim ou não estamos?
mas a verdade é que desta vez a sala queria mesmo saber o que estava a acontecer, e por isso gradualmente teve-se cada vez mais calada, o sven
― obrigado
disse ele
― hmm
estava visivelmente entupido o sven
― o meu nome é doutor sven
peço desculpa o doutor sven
― ødegård
certo
― e o que acabou de acontecer
dois soluços de tosse de nível três na escala de mercalli modificada
― hmm
visivelmente entupido
― foi que o tempo que está acabou de sofrer algumas
e o mais certo era ser a primeira vez que ele se tinha assim a falar para muita gente ao mesmo tempo
― hmm
visto que se estava a espalhar ao comprido
― alterações
e ninguém na sala estava a perceber nada daquilo de qualquer maneira
― se calhar a melhor maneira de explicar isto é que nós trabalhámos segundo um esquema de
qual é a palavra?
― inversão se quiserem
ah é isso é
― ou seja a lógica utilizada foi basicamente a de
estava a começar a controlar isto o sven
― hmm
ou então não
― foi basicamente a de espalhar bom tempo nos sítios onde por norma o tempo que está é uma miséria
a sala continuava toda completamente a leste, cada pessoa que ali estava tinha a cara numa ruga só, e o senhor doutor estrangeiro a reparar nisso e a sentir-se melhor
― e vice-versa obviamente
― Desculpe
alguém interrompeu o sven
― então países onde o tempo que está é de uma maneira geral mau
― Pois nós preferimos dizer
o sven a contrainterromper
― sítios onde o tempo que está é uma tristeza
a contrainterromper e a não dizer nada de jeito
― é que em termos académicos o adjectivo mau desobedece a uma série de parâmetros de objectividade que nós os cientistas do tempo que está temos de
― Sim seja como for
o mesmo alguém interrompeu o sven outra vez
― Respeitar
― Então países onde o tempo que está é mau passam agora a ser ―não sei se o termo que vou usar é cientificamente válido mas vou usá-lo à mesma― uma maravilha?
a pergunta era perfeitamente clara e por isso o sven não sabia o que fazer, alguns segundos depois lá arriscou que
― Sim pode dizer-se que sim
completamente a medo falou o senhor doutor estrangeiro do tempo que está, quase como se adivinhasse que o outro sujeito a seguir ia dizer que
― Como a noruega?
a sala cresceu-se nas cadeiras mas foi só a sala porque o sven encolheu-se todo
― Hmm
assustadoramente entupido o sven
― e os outros também
ou seja o que ele queria dizer é todos aqueles países lá mais em cima onde já não se chega com os dedos faça-se a força que se fizer, e daí os retesamentos de metal a saírem do meio da mão, e onde ele geralmente estacionava o carro para ir trabalhar e à volta do trabalho à porta de casa também, que até ontem respondiam à filosofia do frio no que diz respeito aos casacos que se veste em cima de outros casacos, eram a partir de hoje
― repare isto é uma questão de justiça
pois, seja como for, eram a partir de hoje sítios de sol
― anos e anos de gelo parece-me a mim e de certo modo à minha equipa que merecem algum tipo de compensação
disse ele, a equipa não era dele mas tudo bem
― e foi esse o critério que seguimos
― Como a noruega
o mesmo alguém
― Sim como a noruega
disse o sven, os restantes cientistas do tempo que está encontrassem um buraco qualquer e era vê-los a enfiarem-se por ele adentro, o facto é que não era preciso procurar muito porque em termos de ética profissional este projecto havia de estar cheio deles e por todos os lados
― E os outros sítios?
outro alguém
― Como assim outros sítios?
fez-se de parvo o sven mas de pouco lhe valeu
― Os sítios onde é calor
sim cresceu-se de cantos a sala, os sítios ali pelo meio onde até ontem se estava bem
― Hmm
e onde a maior parte das pessoas que há estavam neste preciso momento numa praia qualquer algures a desafiar o sol para um concurso de estupidez
― nesses sítios vai nevar
― O quê?
duas ou três pessoas chegaram a levantar-se
― Provavelmente por esta altura já está a suceder pelo menos uma saraivada ou outro qualquer fenómeno de características semelhantes
ou seja choviam calhaus de frio queria dizer o sven, insurgiram-se mais quatro ou cinco pessoas
― é importante no entanto que se diga que isto é só a primeira fase do processo
isto nem os outros cientistas do tempo que está sabiam o que queria dizer
― eventualmente
disse ele
― vamos chegar a um ponto em que o equilíbrio em termos climáticos foi de facto atingido e podemos então dar início a uma solução que
não estava a convencer ninguém com isto o sven
― hmm
nem a ninguém nem a ele próprio
― seja do agrado de toda a gente
o que queria basicamente dizer que há de haver um dia em que vai estar calor por todo o lado, mas em doses controladas por uma série de pessoas com cursos que lhes dêem a autoridade para controlar esse tipo de coisas
― E isso é para quando?
o mesmo outro alguém de antes
― Neste momento não sei dizer
visivelmente entupido o sven, e provavelmente a razão pela qual ele não tinha assim de memória a data da passagem à segunda fase era porque não havia segunda fase nenhuma, e por isso esta tentativa de mais ou menos atropelar aquela gente toda numa esquina à traição foi constrangedoramente ineficaz porque eles por acaso até iam com atenção aos carros, ninguém gostou da resposta do senhor doutor estrangeiro e uma confusão de punhos só não lhe aterrou em cima porque antes que houvesse tempo para isso entra pela porta um impermeável com alguém lá dentro e esse alguém era o Presidente do Tempo que Está, nem tempo deu a ninguém para repegar nas máquinas já estava no palanque de olhos nas pessoas, a sala toda calou-se de repente, e
― Ora bem
disse ele
― isto foi de facto tudo muito giro e as pessoas estão sempre a queixar-se mas a questão é que eu vou pôr tudo como estava antes
devagarinho juntava-se o sven de volta à linha
― alguém tem alguma coisa a dizer?
perguntou ele, a sala até podia não ter ninguém pelo silêncio que se pôs
― é bom
e com a mesma treta de antes um estalido no meio do ar e desabou a chuva do céu como se nunca tivesse parado de cair
― de maneiras que
disse ele
― hmm
visivelmente satisfeito o Presidente
― o doutor sven pede desde já desculpas pelo catrapam ocorrido
disse ele, e saiu.
RC
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