um, Encomendaram-me, sob pena de reprovar se dissesse que não, uma biografia de duas páginas em tamanho de letra doze e com formatação de espaço e meio,
dois, Esquivei-me a fazer frases como
- Nasci e depois cresci e entretanto continuo a crescer
usando uma série de processos muito giros mais que ninguém vai perceber, porque decidi escrever a minha biografia na terceira pessoa através de um narrador em primeira pessoa e assim transfiro para o Ele o que penso de mim e para o Eu o que acho que pensam de mim,
três, Acabei agora mesmo de explicar esses processos muito giros que usei,
quatro, Para seja o que for que tenha vida, só há dois verbos, o nascer e o morrer,
e
cinco, Não usei parágrafos porque a vida não tem disso.AUTOBIOGRAFIA DELE,
(escrita assim porque estou a ler o que estou a ler)
Um dia ainda nem era bem dia sequer, as horas se vinham umas a seguir às outras era mais por força do hábito que dos relógios, da matemática hipnótica e muscular dos relógios, e os berros metálicos do telefone abanaram-me na cama, desdobraram-se pelos cantos, e bateram-me duas vezes nas costas, Preciso-te, disse alguém, Atende vamos lá, disse uma voz que se ia montando de corpo e de cara, Sou eu preciso-te, disse ele, ele tem esta mania incomodativa de usar nas palavras as suas próprias regras, as suas próprias leis de as pôr como as quer só porque lhes tem mão, Preciso-te, esta irritação pequenina de fazer isto aos verbos, de os fazer coisas dele, como se Preciso de ti fosse aquele esperanto soluçado que os putos falam no recreio e que com a idade deve ser desistido e enterrado debaixo da cama junto dos monstros e dos bonecos de trapos e dos tijolos de Legos, Preciso-te, repetiu, cansou-se, Acorda lá e liga-me, e despejou-me nos ouvidos o ar resignado de um pulmão como um ponto final. Quando o vi pela última vez, ancorado como se para sempre ao fundo de uma cadeira, a inspirar e a expirar pesadamente, à vez, o ar que agarrava com força nas mãos, disse que estava coberto, e sublinhou com uma pausa, de pó. Aquele pó, disse ele, que se acumula nas estantes, em cima dos livros, que espalha pelas coisas que temos uma camada de tempo, sabes?, perguntou-me, O pó é a única prova que temos de que há tempo, e de que ele passa, costumava dizer. Nunca soube dizer muito bem o que é que ele faz, Mas ele vive de quê? eu nunca o ouvi falar, dizem-me, Tu sabes se ele fala já o ouviste?, perguntam-me, e eu digo sempre que é Qualquer coisa que envolve canetas, que é qualquer coisa que envolve palavras, que sempre que o vejo está a ler qualquer coisa ou a escrever qualquer coisa, num gesto de uma reverência secreta de microfilme, escondendo o mundo do papel, com os ombros, como se estivesse a criar a sua própria língua do seu próprio país, com fronteiras de capa e contracapa e com planos de revolução escrevinhados ao canto de uma página. Encontrei-o, debruçado sobre uma caneta. Queria, disse ele, que o escrevesse, que lhe pediram que o fizesse e que não conseguia, É que repara, disse ele, Eu já não tenho idade e ainda não tenho idade para estar a escrever sobre mim, por isso escreve sem olhar para trás, disse ele, sem pensar muito, ehpá, pega no que te vier à cabeça e atira para a folha, nada de muito giro, nada de elogios, só uma palavra simpática de vez em quando para enganar os gajos, pausa, que ninguém me conhece muito bem e nem eu próprio às vezes me reconheço na rua, pausa, conheço esta cara de algum lado e não sei de onde, e só depois é que me lembro que é do espelho das manhãs e da parte de trás das colheres, e dos elevadores, mas nunca sei muito bem o que me dizer, e não digo, e aí calou-se, passou-me a caneta para a mão, e disse-me que procurasse por ele. É muito mais fácil, diz ele, quando são os outros a falar de nós, principalmente, riso nos olhos, quando lhes escrevemos as palavras para dizer. A vantagem do teatro em relação à vida, diz ele também, é que lá as pessoas sentam-se para nos ver, e na rua ninguém nos liga nenhuma, às vezes cumprimentam-nos com uma pancada de ombro, olham-nos, e ficamos dois segundos a tentar decidir de quem é a culpa, e a que horas é que está em casa para eu lha poder ir entregar, e nunca é de ninguém. Talvez seja isso que as palavras dele são, acho eu, uma ordem de vida que possa ser seguida, e se não para ele, para alguém. Andou durante meses, e continua, parece-me, a tentar escrever um personagem que comece o seu teatro como dizia ele que ele deve ser começado, sem barulhinhos, sem merdices e sem elencos, Elenco é uma palavra grande, dizia ele, e falsa, as vidas têm números pequenos, e o que ele procura, parece-me, é uma certa ideia romântica de um D. Sebastião à espera de si próprio, a procurar-se todas as manhãs de novo atrás das esquinas do nevoeiro. Fala ele, acho eu, de uma certa inquietação infantil, de um ser Quase manhã de natal quando é verão, e de ser Quase a palavra que dá propósito a tudo, e que vê sempre longe. E quando me sento de caneta na mão não acho que ele tenha encontrado já o seu timbre, mas acredito no Quase, e vejo nele um dedo apontado. Então, perguntou ele, quando era já manhã outra vez, O que é que eu sou?, que palavras é que eu sou?, eu disse, Não faço ideia, e ele calou-se, e quando reparou que continuava calado desligou sem dizer nada.
RC
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