Mandaram-me um texto para que o pesasse, pontuado de gordura
(obviamente arrancado a uma toalha de restaurante)
e rasurado a manchas de café,
entregaram-mo mesmo do meio da mão, de onde os dedos se insuflam de sangue, com um orgulho esmaltado de parede de ventrículo, físico, forte
e as mãos vazias agarravam aquele tipo de gozo infantil de já saber apertar os cordões, de nunca se ter dito aquilo daquela maneira, de ter encontrado uma página escondida do dicionário com substantivos de que já ninguém se lembrava, e de os saber ordenar em estruturas de pirueta tendo em conta o ritmo, a aliteração e o peso mastigado de cada palavra, e a cor, e o cheiro
- Lê
(sentia-se no papel ainda o sabor de borracha do almoço, da esponja do bife e da gordura de motor de automóvel das batatas)
- e diz o que é que achas
(sentia-se na língua o tempero metálico dos talheres e o vidro de cinzeiro dos copos)
- que este estou convencido que é daqueles bons
(sentia-se o açúcar de areia do café, áspero, pedregoso)
e logo na primeira linha três vezes a palavra olhos e quatro a palavra tu
(como é isso possível nem sei)
e por ali abaixo mais umas quantas considerações sobre a mecânica do coração ou outra qualquer frase de sopa de pacote,
e novamente os olhos, e treze vezes tu
numa hemorragia repugnante de mijo, como se atrás dos pulmões não estivesse um punho fechado mas uma bexiga de plástico a bombear em círculo para os dedos dos pés e para os olhos enevoados de candeeiro de rua
- Então?
ou para as mãos doentes em forma de apara-lápis, ou para as cabeças desiludidas que acham que um desgosto tem sempre os catorze versos de um soneto
- Então?
e que isso basta para escrever
- não está tão bom?
como se cada porra de lágrima engolida fosse uma gota de água do Parnaso e todos os corações partidos fossem máquinas de poetas,
como se os olhos alguma vez sorrissem,
qualquer frase com a palavra olhos
- Tudo o que eu sinto está aí
(e isto vem nos livros)
é só mais uma coisa que ficou por dizer, que é só mais uma coisa que ficou por ouvir
- Então está bom ou não está?
como se as palavras tivessem culpa,
reli o texto mecanicamente, só com os músculos dos olhos
(substantivo comum masculino plural vírgula órgãos da visão ponto final)
e lembrei-me de todos os que já escrevi iguais àquele, também numa sangria diluída de lágrimas, e disse pela ponta do braço
- Está sim está muito bom.
RC
0 pessoas acharam bem comentar “coxo de uma perna do coração”
Leave a Reply