era uma vez havia um país (II)


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Continua.

Atravessa-lhes o impreterível da guerra. Em todas as histórias a guerra sai aos
personagens da pele, como um dever que lhes decorre do direito da terra. E no entanto também a guerra advém da própria terra, da eterna disputa pelo direito a ela. O território jugoslavo levava no início da década de 90 pouco mais de setenta anos de corresponder a uma unidade que lhe impuseram no fim da I Guerra Mundial. Nasceu como a pátria devida aos povos eslavos da península balcânica, depois de séculos de domínio austro-húngaro e otomano. No entanto, valia uma unidade falsa, que agrupava várias etnias eslavas que se dividiam entre o desejo de estabilidade política e a vontade de ocuparem uma pátria própria, do seu tamanho. Nos filmes encontram-se todos os tamanhos de nações, e por isso todos os tamanhos da guerra. Entre o relativo afastamento macedónio e o conflito activo das regiões da Bósnia e da Sérvia, os três realizadores entendem todos a guerra à partida não como aquilo que desmembra um povo, mas como aquilo que atravessa os vizinhos uns contra os outros, que desdobra as famílias, e que corta cada pessoa entre si própria.
O filme No Man’s Land, de Ðanis Tanović, é o único que é feito depois de a guerra ter acabado, e é por isso o único que sabe já o seu fim quando se propõe fazer o retrato do conflito. É, de todos eles, o mais realista, no sentido em que leva a sua narrativa directamente para o centro da terra de ninguém, e todo o filme nos aparece sempre da cor do chão, e do sangue, e nos obriga a entender que a guerra é por causa do chão, e do sangue. Quando constrói a sua trincheira em 2000, Tanović goza já da distanciação que lhe permite não fazer um filme sobre a mecânica da guerra, mas sobre as verdadeiras questões que toda aquela região levanta. Os seus soldados lutam com armas em vez de perguntas, porque ambos levam a verdade nas dobras do corpo, e só lá se apercebem que levam ambos a verdade no corpo. Pode perguntar-se de quem é a terra afinal, já que o desenho da Jugoslávia resultou mais de um acto político que de uma verdade popular. Corresponde à pátria de que nação? Os eslavos do sul são um conjunto de nações ou um conjunto de etnias? E se são nações, porquê arrumá-los todos no mesmo país?
Na verdade dos filmes, poucos sítios há que sejam mais cinematográficos do que uma trincheira. O chão, onde todas as outras pessoas andam e tiram cultivos da terra, fica acima, noutro nível, e enterrados como os soldados só aqueles de entre os vivos que morrem. O chão abre-se para engolir os homens que lutam, protege-os com o compactado da terra. As trincheiras dos filmes disfarçam-se de serem sítios a sério, quando verdadeiramente são sítios onde os homens vão deixar de ser, onde se vão esquecer porque lutam, e onde só se lembram de tentar não morrer. Nesse sentido, os homens de Tanović são declaradamente personagens porque perguntam a guerra, em vez de lhe tentarem escapar, nem que seja só ao não pensarem nela. As tábuas que seguram a terra, e os buracos no corpo e o pó e o fumo, esses, parecem verdade, para que nem por um segundo os homens tenham de o ser, e por isso nos juntamos às perguntas escavando pelas respostas. Em Tanović, a guerra pergunta-se. Em Kusturica não.
Chegamos ao fim de quase três horas de filme para o realizador nos avisar que o filme não tem fim. O filme, afinal, fez-se levava-se a guerra lutando, e estreou em Maio de 1995, mas hoje vemo-lo e o filme continua a escusar fechar-se, porque continua eternamente cíclico e, por isso, eternamente aberto e eternamente fechado. Parece Kusturica dizer-nos que os jugoslavos levam a guerra no sangue, e por isso periodicamente ora lhes está na cabeça, ora lhes está nas pontas dos braços, ora lhes está por detrás dos olhos, mas nunca lhes poderá sair do corpo sem que sangrem eles e se esvaziem. Viver é viver apesar da guerra, e a paz é também paz apesar da guerra. E cinquenta anos a guerra foi sempre guerra, mesmo quando cá em cima as coisas se seguravam pacíficas, debaixo do chão a luta continuava de punhos levantados, e de canos de espingardas, como se fosse o chão afinal aquilo que queriam furar morto. Porque o chão se defende para sempre como se defende uma pessoa da família, como uma coisa que nunca não existiu, e “a guerra não começou verdadeiramente enquanto irmão não mata irmão”. Lutam as pessoas contra o chão para o defenderem, e morrem-lhe em cima para passarem a ser parte dele. Logo é a terra de ninguém de Tanović não a trincheira escavada no chão mas o próprio chão da Jugoslávia, terra de ninguém mas partilhada, onde se entendem as pessoas que depois se matam, e se entendem e se matam ciclicamente.
Ciclicamente. O filme de Milčo Mančevski é ainda mais evidentemente circular. Podem as pessoas sair da Jugoslávia, mas dita o chão que lá têm de ir morrer, assim como podem as pessoas matar, mas dita a lei que terão de morrer. A lei é a do povo, é a mesma que defende o quintal e os animais do rebanho, é a mesma que vinga um filho ou um irmão, é a mesma que levanta as pessoas do chão pela sua pátria. É uma lei de nação, de instinto, de cultura quando cultura é a terra e o vivermos-lhe todos. Houve nos povos da Jugoslávia, no início da década de 90, uma vontade maioritária de segurarem-se todos juntos, mas algumas medidas políticas reorganizadoras fizeram com que se criassem os movimentos e partidos nacionalistas que levantaram a guerra de novo. A circularidade dos três filmes, de acabarem todos como haviam começado e de sempre terem tido já fim, é qualquer coisa de verdadeiramente europeu, de intrinsecamente balcânico, e de interiormente humano. RC


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01|dezembro|2006

The many faces of robert webb.
Isso do ricardinho acabou.

(Rufus Wainwright | Rules and Regulations
> from Release the Stars)



A ler Frost de Thomas Bernhard e ouvir e a ver coisas que se fôssemos aqui a pô-las todas havíamos de chegar atrasados a sítios onde temos horas para chegar.

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