De maneiras Doutor Freud que o que se passa é o seguinte,
(posso beber da sua água em secando-me a boca?)
passa-se que ando a ter sonhos muito estranhos, e toda a gente me disse que se há pessoa neste mundo que percebe desse tipo de palhaçadas,
perdoe-me a expressão, você que é médico destas coisas sabe que às vezes vêm-nos palavras que não era bem o que a gente queria dizer,
se há pessoa neste mundo que percebe desta coisada toda dos sonhos e dessa fantochada é o senhor doutor,
(e vê-se que é dos bons visto que tem as paredes todas cobertinhas de papéis, bendito seja)
e de maneiras que cá estou eu, ando muito transtornada com isto dos sonhos
(bendito seja quem é inteligente)
porque às vezes estou eu muito bem sossegadinha a dormir e saio-me com cada um que até nem parecem coisas minhas, e agora não sei por que carga deu-me para andar a sonhar com pessoas antigas, percebe o senhor doutor?,
(eu vou bebendo da sua água em estando-me a secar a boca)
pessoas que já não vejo há uma quantidade de tempo, de repente estou eu descansada a dormir e vêm desfiar conversa comigo, está o senhor doutor concerteza a perceber, não é?, que isto não está certo,
(e que confortável que se está neste seu gabinete)
não está bem que eu ande a sonhar com isto, muito tempo houve que eu não sonhei com nada de esquisito, está o senhor doutor a ver, de quando em vez sonhava que alguém me vinha dizer que estava na hora de mudar as alcatifas
(e de facto estava, uma vergonha)
ou que me tinha eu esquecido de passajar certa peça de roupa a ferro, ou coisas assim, sabe?, o preço das coisas, quando estavam para entrar os saldos, sabe?, coisas assim,
(onde é que comprou esta espécie de sofá? estou a precisar de um como este lá para casa mas não posso pagar os preços que o senhor doutor concerteza pagou por esta riqueza de sofá)
e de repente, uma noite, aparece-me num sonho a Lurdes, que muito amigas que nós fomos, quer dizer,
(empreste-me lá da sua água, se não se importa)
muito amigas é se calhar botar um bocadinho de renda na história, se me percebe o senhor doutor, éramos amigas de às tantas nos trocarmos na rua e
– Como estás, filha?
e ela
– Bem, e tu, rapariga?
de volta, sabe como é, uma pessoa passa por mal educada se não cumprimenta as pessoas, e se há coisa
(água)
que eu não sou é mal-educada, desculpe lá estar-lhe a beber a aguinha toda mas isto atrapalha-me toda, sabe?, nunca vim a um senhor doutor dos seus, das tolérias e assim, mas vê-se pelo seu gabinete
(e que bonito gabinete, sim senhor, e esta riqueza de sofá)
que tem tanto dinheiro como esperteza, calculo eu que seja, e quem me disse para cá vir, o meu filho, o meu mais velho, que se está a fazer advogado,
(deus lhe dê tantos papéis como ao senhor doutor, abençoado seja)
disse-me que o senhor era o melhorzinho, e eu ando tão mal que só um médico dos bons é que me pode acudir,
(e careiro é, por isso deve ser mesmo dos bons ou ninguém lhe cá vinha)
de maneiras que a Lurdes era de irmos de quando em vez comer uma merenda ou assim, e dávamo-nos por acaso muito bem, ela sempre foi gente de mais dinheiro do que nós éramos,
(a casa dela tinha escadas por dentro, credo, coisa que a minha nunca teve, deus me defenda os meus joelhinhos)
mas mesmo assim chamava-me por azar para ir merendar, ou ir pentear aos saldos pelas blusas mais ricas, chegámos até a ir duas vezes a Fátima em dias de romaria,
(excursões bem bonitas, deixe-me dizer-lhe)
mas pouco mais, eu levava a minha vida e ela levava a dela, por azar lá nos encontrávamos,
(por azar não, por acaso, sabe como é, os meus anos de esfregar escadas a madames)
e quando nos encontrávamos era para distribuir conversa, muito minha amiga era ela, agora que penso nisso, muito amigas éramos nós, eu mais que ela, mas muito amigas as duas,
(não tem mais uma gotinha de água, por excesso?)
de maneiras que o problema põe-se no seguinte, senhor doutor,
(obrigado)
um dia destes dou por mim a dormir e começa-me um filme a correr por detrás dos olhos, e uma pessoa, sabe como é, o senhor doutor escreveu até um livro sobre isso, disseram-me,
(eu estive em Marseille antes de vir para Wien, a vida custa a ganhar)
mas eu os livros fazem-me confusão, percebe?,
(se calhar não sabe, esta riqueza de sofá não lhe deve custar a sair do bolso, e este primor de papel de parede)
e assim como assim eu preciso dos olhos para a renda, a Lurdes é que me comprava muitos bordados, muitos bordados me comprava ela, até que um dia deixou de me falar,
(é curioso por acaso estarmos em Wien no início do século vinte)
pergunte-me o senhor doutor o que é que se passou, pergunte-me o que é que eu lhe fiz, e maldição se eu lhe sei dizer,
(porque eu ainda há minutos referi Fátima e a senhora, bendita seja, só lá dá um salto em mil nove e dezassete)
sei que um dia
– Como estás, filha?
e respondeu-me o senhor doutor?, assim me respondeu ela
–
nada, e depois nunca mais, pergunte-me o senhor doutor porquê isto e, digo-lhe, maldição se eu sei,
(estranho eu ter falado de Fátima, sabe o doutor explicar isto? já agora aproveito a mesma consulta)
e por isso, entende o senhor doutor, é que eu estranhei que a Lurdes, que já não lhe falo vai para
(ora)
vinte anos, é isso
(credo)
de repente me apareça num sonho a meio da noite, mas o mais estranho
(Fátima, do que eu me fui lembrar)
não foi isso, o mais estranho é que no meio da toléria estou eu sentada a conversar com ela, como quando era das merendas, e de repente sai-se ela
– Então, já chegaste a falar com a Lurdes?
ela, percebe?, a Lurdes é que me pergunta se
– Já chegaste a falar com a Lurdes?
e o mais maluco é que eu no sonho não vejo onde está a maluqueira, e respondo-lhe toda lampeira que
– Não, ainda não
percebe?, concerteza que percebe, estou eu para ali a desfiar conversa com ela sobre o facto de não nos falarmos vai para vinte anos,
(então acabou-se-me já a água outra vez?, desculpe lá isto, um homem tão distinto e para aqui preocupado com águas)
e como eu me acordei e lembrei-me disto que lhe conto, porque há alguns, valha Deus, que uma pessoa acorda e esquece, mas este não, este lembrava-me,
(agora lembro-me que a Lurdes tinha um sofá destes)
quando contei este toledo lá em casa disseram-me que tinha de vir a um doutor como o senhor doutor, um médico da gente tolinha,
(é isso, eu sabia que este sofá me dizia alguma coisa, e diz)
e por isso cá vim, senhor doutor, então,
(que barba distinta, e muito escreve o senhor)
que diz?
RC