O mundo para os Eames é todo um problema grande e só e à espera de ser resolvido, e que Charles Eames ponha os limites do design precisamente onde acabam de se complicar os problemas não vem por acaso. Acabassem hoje e aqui todas as atrapalhações e inconvenientes que incomodam as pessoas, como de repente precisarem de alguma coisa e ela não haver, e imediatamente deixava o design de ter razão de ser, porque o design não se explica a si próprio nem justifica a sua existência nem se substitui a uma obrigatória premissa. O design para a gramática de criação dos Eames e no contexto do seu trabalho todo aparece como substantivo comum masculino singular actividade de resolver e mais nada. Terá sempre antes de mais de procurar responder a uma necessidade anterior que oriente o processo inteiro desde o seu início ao fim –quando exista um– e nunca pode sobrepor-se a ela. Se quisermos outra maneira de dizer então há uma necessidade que arranca o projecto do chão, e lhe dá formas de devir e se enche de braços em tentativas, em experimentações e em ameaças de solução, até que potencialmente chega o produto final problema resolvido e design é tudo o que está no meio. É a problemática do mundo por acabar que se desprende das coisas e se transplanta toda para dentro da cabeça, e o que fazemos nós é guiá-la atinada na procura superior pela ordem. É importante talvez esta palavra aqui : ordem. Chamar problemas ao mundo ou chamar-lhes confusão acaba por ir eventualmente dar ao mesmo. Atravessa os dois conceitos uma genérica desordem dos elementos que é preciso controlar e reordenar e com isso tudo resolver, e é por isso que diz Paul Schrader que os Eames, estivessem eles a fazer cadeiras ou capas de revistas ou catálogos comentados de instantes de luz ou casas ou coisas de película –fosse o que fosse– tudo isso são estruturas. Chamar-lhes estruturas é escolher uma palavra que por um lado significa esquemas com ordem dentro –com necessidade, meio e fim– mas que pelo outro serve também para coisas e coisas essas que em toda a sua simplicidade ou falta dela se sustentam a si próprias, servem elas mesmas uma função e fazem-no de forma auto-suficiente : são ideias que são objectos, ou são objectos que são ideias. Daí que a palavra estrutura substantivo comum feminino singular nunca se alheia do trabalho dos Eames. O próprio design como eles o vêem acaba por não ser mais do que uma estrutura que cria estruturas, ou às tantas que não as cria mas que as procura e que depois as encontra e desentala da confusão, até o dia em que o design acaba de uma vez com o desarrumo da civilização e deixa de haver problemas de uma assentada, isto tudo é óbvio segundos antes de deixar de haver design e possivelmente meia dúzia de horas antes de se acabar de vez a civilização. Sobre isto claro que importa se calhar dizer que o bom design está a resolver problemas ao mesmo tempo que levanta outros de outro género, então agora toda a gente tem cadeiras iguais?, não o que me perturba é que lá por todo o mundo ter destas coisas em casa não significa necessariamente que sejam más, entendes?, é que se a classe média não permanece como o bastião inabalável do mau gosto então que sítio é este em que vivemos?, já não se sabe o que é bom e o que é mau, eu digo-te, isto estou convencido que é um problema, ainda que tudo bem de outro género. Outra categoria inevitável para entender o conceito de estrutura e controlá-lo e às tantas dar-lhe a volta quando é preciso é a noção de limitações, que se entende também ali pelo meio entre a necessidade e o objecto. Dizer que as limitações atrapalham o processo e causam transtorno é quase como chegar ao fim de um problema e achar mal que ele se tenha resolvido, e no entanto peça-se a um arquitecto que faça uma casa e o que mais problemas resolve é uma limitação só chamada gravidade, e quem diz uma casa diz uma cadeira, o facto de ela ser incontrolavelmente puxada para o chão elimina logo à partida a necessidade de fios e de ganchos e de uma série de serralharias complicadas só para que uma pessoa se consiga sentar, e depois que se preveja mais ou menos o comportamento dos materiais e que se saiba um ser humano normal quanto mede são logo mais dois problemas despachados num instante, daí que quantas limitações haja tantos são os problemas acabados de imediato.
Ou seja, necessidades mais limitações segundo –e seguindo– estruturas resolvem problemas. Não necessariamente pelo caminho mais fácil, onde é que está o problema no que é fácil?, mas pelo caminho mais eficaz, até porque só assim se percebe que tanto Charles como Ray, com um conhecimento não mais do que residual em como fazer filmes, tenham acabado por produzir mais de 125 filmes num espaço de 28 anos. Aliás a história do fazerem-se esses filmes está cheia de máquinas inventadas e de gente que ganha Oscars a puxar atilhos e de estúdios no fundo da casa, até porque dizer-se que a casa era um estúdio ou que o estúdio era uma casa não há-de ser tão diferente quanto isso, filmava-se os filmes e parava-se à noite, de dia engendravam-se revoluções de contraplacado e ao fim da tarde giravam-se piões, era assim que funcionava, e outra maneira possível de olhar para isto é que andavam os Eames constantemente com o estúdio na cabeça, como se os filmes, acima de tudo, fossem jeitos de ter ideias, fossem registos impossíveis das ginásticas de pensar. Não os mais fáceis : os mais eficazes. A linguagem dos filmes, que Charles teve de perceber com as mãos como quem aprende a falar, apareceu-lhe como a melhor maneira de guardar uma ideia. De repente, davam-lhe um mundo novo, uma possibilidade nova que fugia do escuro em abusos de luz, e que era uma ferramenta e que ao mesmo tempo era um objecto. Pronto, definitivo, contido, e cheio de percurso dentro. Daí que todos os filmes dos Eames são essencialmente filmes-ideia, mesmo os outros, há quem diga que uns são ideias e outros não, os outros são brinquedos, mas a separação entre os dois não será assim tão arrumada, porque se uns são filmes de ideias os que sobram então são filmes de ideias de brinquedos. Haverá melhor maneira aliás de pensar em piões do que vendo-os em equilíbrios difíceis, a andar à roda em geometrias de desafio?
Tops não é um filme só sobre piões, ou se o é então há que considerar a impressionante complexidade dos piões, que além de serem forma são cultura, são semelhança e diferença, depois são ainda risco, sucesso e fracasso, verticalidade e queda, e são infância, e são destreza e habilidade, aprendizagem e crescimento, rotação, perenidade, física e mecânica, e a questão é que se não viessem os Eames mostrar-nos isto tudo nunca haveríamos nós de parar por um segundo para pensar nisso e pôr um pião a girar outra vez. Os filmes faziam-se segundo os processos da memória, justapunham-se imagens e os buracos que houvesse enchia-os a cabeça com fragmentos de imaginar, e fossem sobre piões ou comboios o mais importante acabavam por não ser os filmes mas o respeito pelas coisas filmadas e pelo filmá-las e a dedicação acima de tudo. O resultado era mais uma vez uma necessidade do processo, de lhe pôr corpo e lhe dar fim. A linguagem fílmica dos Eames é no entanto tão flexível que depois há outros em que é preciso traduzir construções matemáticas retorcidas em palavras de escola ou teoremas algebro-informáticos ou então conceitos complicadíssimos da astrofísica molecular e as categorias de filmar enchem-se de caminhos novos, espalham-se por telas a mais e tudo ao mesmo tempo, há aliás a intenção de confundir as pessoas pelas costas, entupi-las de informação por todos os lados e a certeza intuitiva de que é assim que a ciência toda funciona de qualquer maneira : a natureza está constantemente a dar-nos pistas o tempo todo e os anos que não demorou Copérnico a lá chegar, e Newton igual, não foi um dia que a terra se lembrou de puxar as cadeiras para o chão, foi sempre, mas gravidade com esse nome não há desde sempre, daí que o truque e foi isso que os Eames fizeram é dizer tudo ou o mais possível e esperar que alguma coisa fique. Os filmes são o menos importante nisto tudo por isso mesmo, porque se adaptam incondicionalmente ao que têm para dizer, e são memória nuns e inovação noutros. Que os filmes enquanto objectos resultem tão intocáveis e poemas é culpa sobretudo do processo todo que foi preciso para lhes chegar, da estrutura mecânica que os segura inteiros, dos arcos de cores e das linhas de tempo, e de serem feitos à mão como uma unidade de arte impressionante, aliás fizeram os Eames esculturas para quem as quisesse, estava uma pessoa a almoçar sentada em mármore de Carrara e nem se dava conta se os anúncios não falassem nisso, daí que tendo em conta a arquitectura e o mobiliário e tudo em que os Eames puseram a mão não é muito atravessado dizer que os filmes, todos eles, são essencialmente estruturas de pensamento, e da mesma maneira que um sítio de morar se sustenta de paredes então os filmes são casas de ideias com ideias dentro, e que eles se segurem em pé ainda é um tributo à maneira de pensar dos Eames, e uma necessidade acima de tudo.
RC