um homem que não gregor samsa


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O homem que morava na casa e que tantas vezes me tentou esmagar à vassourada encolhia-se agora tolhido e positivamente amedrontado no buraco que eu costumava ocupar no fundo da parede, escavado, escuro de susto. Encontrei-o de manhã, disfarçado de sombra, engolida a cabeça pelos braços. Gemia a espaços. Olhei-o de cima para baixo, estranho, uma das patas escusava-se à geometria das patas que funcionam. Lembrei-lhe um pé que uma perna mais curta arrastava. Era o homem que morava na casa. O mesmo que nos olhava de lado pelas solas dos pés e pelas cerdas da vassoura. O mesmo que não suportava ratos, que nos odiava de voz levantada, como a fala grave que as árvores soltam ao crescer.
A mulher, há dois dias deixara de ir aos campos pela manhã. Em tensão, nos fios dos telhados, líamos a terra a ser rasgada quando era de ser rasgada, ou remexida quando era tempo disso, de modo que todos os dias o chão chamava e pedia qualquer coisa, e todos os dias a mulher ia, escusava-se ao sol e saía para fazer as vontades à terra. Há dois dias já queixava-se a terra, primeiro baixinho e agora mais alto, como o ruído eléctrico do verão quando é calor. Voámos os campos à sua procura, mas escondia-se. Há dois dias deixáramos de a ver.
Ao fim de alguns dias, como é normal, deixou de haver migalhas para trazer para a parede. A madeira do chão levantava-se de pó. O homem protegia de patas outro insecto, dez vezes mais pequeno. Colava-o a si como um coração que bate fora do corpo. Percebi aos poucos que era a mulher que também morava na casa, velha, pequena, talvez mãe do homem. Como era ele velho também, cinzento, arrastado, a mãe muito tempo esquecia-se de lhe ser mãe. Maquinalmente fazia o almoço e maquinalmente refazia-o para o jantar. Cruzavam-se pela casa sem se falarem. O homem sabia que a mãe estava lá, e a mãe positivamente sabia que o homem estava lá também, por isso escusavam-se a procurar-se e cada um morava na casa apesar do outro.
As ervas começaram a crescer entre as couves e as batatas, ou em vez das couves e das batatas, e os campos nas traseiras da casa cobriam-se desde há semanas com a aleatoriedade dos verdes que crescem ao acaso. Obedeciam apenas à chuva quando chovia, ou ao sol em dias de sol, e cresciam, multiplicavam-se de folhas e levantavam-se retorcidos do fundo da terra. A mulher continuava sem aparecer, um mês devia ser já, e das catenárias nunca mais vimos a mulher.
A medo começaram os dois insectos a sair da parede, e a arriscar a luz. Digo insectos, e sublinho duas vezes, porque nunca se ausentou do buraco um que não levasse o outro. Conheciam, claro, todos os sítios da casa, mas todos os sítios da casa eram maiores do que os lembravam, e por isso descobriram os espaços debaixo dos móveis, atrás das estantes, dentro das paredes, por baixo das tábuas do chão, e dentro dos interruptores, e dentro das gargantas e dos braços dos canos. Aos poucos descobriram uma outra casa dentro da casa onde moravam, e os espaços dentro dos caixilhos das janelas, e começaram a sair para a parte de trás da casa.
Nunca mais vimos a mulher. Os verdes dos campos já cresceram e já morreram, e chegou já a altura de deverem crescer outra vez. A única coisa constante encosta-se num canto, desmontado, um homem feito de dois paus cruzados e de bocados de lata que a mulher teve nos campos mas que desmontou, e encostou num canto. Comemos agora o que aparece, ou uma restante folha de verde, ou insectos, ou às vezes deixamos mais tempo o telhado e voamos mais longe, mas voltamos, sempre, e nunca mais vimos a mulher.
Os insectos, não os vi mais. Ouço que saíram aos campos e saíram levados no voo de um dos pássaros do telhado. Entretanto, continuamos os ratos escondidos num buraco no fundo da parede, na sombra, positivamente fugidos para sempre do homem que morava na casa, e da mãe dele. RC


2 pessoas acharam bem comentar “um homem que não gregor samsa”

  1. Anonymous Anónimo 

    é o gregor samsa do metamorfose?

  2. Anonymous Anónimo 

    O senhor professor da cadeira de escrever disse
    - Estão a ver o que fez Kafka? quero mais ou menos isso mas como se trata de vocês infinitamente pior e mais básico
    e nós fomos e obedecemos.

    (PS, O título deste mini-espécie-de-conto chegou a ser KAFKA JÁ FEZ ISTO MAS EM BOM.) RC

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01|dezembro|2006

The many faces of robert webb.
Isso do ricardinho acabou.

(Rufus Wainwright | Rules and Regulations
> from Release the Stars)



A ler Frost de Thomas Bernhard e ouvir e a ver coisas que se fôssemos aqui a pô-las todas havíamos de chegar atrasados a sítios onde temos horas para chegar.

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