era uma vez havia um país (III)


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Acaba de continuar.

Kusturica é realista apenas nas imagens de arquivo, com as quais segura o filme firmemente à sua cidade, para poder depois esticar o filme para lugares de as regras serem outras. A música de Goran Bregović ajuda a maior parte das sequências do filme a fugirem-se a serem verosímeis, e quase todas as cenas despejam-se em escapadas surreais, porque lá fora a guerra rebenta sobre Belgrado. No entanto, a ubiquidade da banda não serve só os propósitos da fantasia. Serve também a cultura nacional, a tradição, serve o tempo e o sangue e a música cigana. Representa o povo que está sempre lá. Enche de corpo a memória.
“Nós somos aquilo que lembramos”, diz George Steiner, e os ciganos são que levam séculos de trazer a Europa toda nos pés. Foi perseguindo o sol, de onde ele é manhã até onde ele é tarde, que tomámos todo o chão até ser Atlântico e não haver mais chão. Foi com os pés que vimos a última praia, e continuámos à procura de outra ainda mais última. A sua relação com o chão continua diferente, o chão só é o deles enquanto eles lhe são coisas em cima. Vem de sempre o eterno sentimento europeu de não estarmos onde verdadeiramente somos, de ser sempre ligeiramente mais ali o nosso bocado de terra, mas de devermos a este onde nos temos uma espécie de protecção constante, porque é neste afinal que nos temos. Como se vê nos contos de Mančevski, as razões que nos levam a matar são eternamente menos válidas do que as que nos levam a morrer, porque com o fim do corpo adiamos o fim da terra ou dos filhos ou o nosso fim, e passamos a ser memória que fica amarrada ao chão. Kusturica esconde-nos debaixo do chão porque para protegermos o chão tem o chão de nos proteger. O mesmo faz o chão de Tanović. A Jugoslávia dos três filmes é uma terra feita muito mais de lembranças do que de chão. Tanto o subterreno de Belgrado como os montes da Macedónia e o buraco de guerra da Bósnia são o menos referenciados possível, porque não é preciso que sejam os filmes a ter as referências, mas as pessoas. Os filmes aumentam-se então das memórias de cada pessoa que os vê, e que neles encontra pedaços do seu país, e das pessoas do seu país, e da memória colectiva de um mesmo país onde moramos há toda a idade da Europa. Só há um país na Europa, e por isso anda Kusturica e Tanović e Mančevski e andamos todos à procura do sítio em forma de linha onde ele acaba, e anda Angelopoulos eternamente à procura também. Deve ser porque sentem os gregos o tempo de outra maneira, nasceram quase todos já alguém o tinha escrito, falava-se em poemas das viagens e de continuamente andar, e assim é o tempo, continuamente andar, e procurar porventura um sítio onde o tempo acabe e comece doutra maneira. Mas antes de acabarem as coisas há sempre o nevoeiro que não deixa ver onde acabam, tudo é subitamente fosco e vago, como as memórias crescem também vagas e indefinidas. Os poemas de Angelopoulos são andar eternamente à procura, mas devagar. A guerra torna tudo mais urgente, e por isso os outros filmes são compassos autoritários de música, são folclore, são minas que se encolhem debaixo do chão, são chuva que espera para cair. Andar à procura é, afinal, estar para sempre à espera da chuva que vai cair.
Tanto é verdade Steiner quando diz que trazemos livros na cabeça como seria se dissesse que trazemos a Europa na cabeça, tal como a trazemos nos pés. O futuro, no entanto, nunca o trazemos na cabeça, mas sempre só nos pés. Conhece-se o futuro apenas com cada passo que acabámos de dar. Por isso nenhum dos filmes acaba, eventualmente fá-lo-ão com o tempo, mas nunca se espere que acordemos um dia e os filmes se tenham fechado, nunca se julgue que a Europa acabou de ser caminhada toda pela primeira vez, e que decidimos finalmente onde vamos ficar, e ficamos. RC


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01|dezembro|2006

The many faces of robert webb.
Isso do ricardinho acabou.

(Rufus Wainwright | Rules and Regulations
> from Release the Stars)



A ler Frost de Thomas Bernhard e ouvir e a ver coisas que se fôssemos aqui a pô-las todas havíamos de chegar atrasados a sítios onde temos horas para chegar.

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