― O ar que eu respiro é trazido de França,
disse pelo nariz Dom Frederico o Muito Chato, descendente directo por parte de uma prima dos condes de Gesamtamwelt
(e duques de Citröen por parte da maison de vacances)
― não sei se já te tinha dito,
e já tinha de facto dito e mais do que muitas vezes Dom Frederico o Excessivamente Aborrecido
― é uma coisa de saúde qualquer que eu tenho
abria-se e fechava-se o nariz de sua excelência o marquês, na aldeia e nas terras por ali em volta mais ninguém havia que fosse marquês ou que quanto muito tratasse o rei por tu
― Eu trato o rei por tu,
como fazia o Dom Frederico
― chego-me a ele e digo Ó rei queres ir à pesca ou assim?, e ele antes de dizer que não agora já nem manda os guardas baterem-me nem nada,
os buracos do nariz de sua fineza o marquês
― por isso eu o e rei é tu cá tu lá mas é principalmente tu lá porque ele embirra comigo,
e por isso grande respeito havia na aldeia por Dom Frederico mas pouca paciência para sua coisa mais nobre Frederico von Allein-Schlaffen, VII Marquês de Enterra-Rainhas
― nunca percebi porque é que o Dinis atravanca comigo
o Dinis era sua alteza real e atravancava precisamente por isso, porque Dom Frederico e todos os marqueses antes dele tinham recebido terras e fortunas e privilégios e mais uma série de coisas boas
(de acordo com o decreto-real que instituiu o título seis indivíduos antes)
em troca de um único serviço, e só uma tarefa era que lhes cabia fazer e era que em morrendo uma rainha
― ah a Leonor disse-me o Dinis que manda beijinhos,
era Dom Frederico quem havia de abrir o buraco, despejar lá para dentro a rainha e depois tapar aquilo tudo com projectos de florzinhas
― ai a Leonor
para que sua alteza real a morta pudesse descansar e já agora contribuir para a diversidade do jardim em termos de cor e de cheiro
― O ar de cá é impossível,
continuava Dom Frederico o Comprimido Para Dormir
― só nas minhas terras fartam-se de morrer pobrezinhos e é sempre com aquelas doenças mais más que depois é preciso queimá-los e assim,
falava sua excelência o Insuportavelmente Desinteressante com um primo da Flandres
― é um horror,
da Flandres e dele também
― um horror e uma chatice
quando lhe rasga pelos jardins um mensageiro, e de tal maneira vem o moço sem ar quase nenhum que Dom Frederico lhe pergunta
― que há?
e o que há são más notícias, diz o moço, principalmente porque em vez de dizer mais nada diz só
― Sua alteza finou-se
― O Dinis?
o moço ainda se falta todo de ares mas abana com a cabeça que sim
― o Dinis finou-se?
entretanto o primo da Flandres não apanha uma
― quando é que foi isso?
e o moço diz-lhe que foi antes de ontem, que estava sua majestade a dormir e de repente já não estava, o castelo quase caiu com o berreiro que fez a rainha, mas se era suposto sua alteza acordar à conta do escarcéu a verdade é que não acordou, deixou-se ficar morto como se tinha e pelo que se sabe ainda está
― morto?
sim, morto, disse o moço
― ó que caraças,
via-se pelo nariz de Dom Frederico a abrir e a fechar que isto lhe tinha causado incómodo para não dizer que tinha sido uma merda era o que tinha sido
― isto é uma merda é o que é,
ou então para dizer isso mesmo, e o primo da Flandres ainda completamente a leste
porque o que se passava é que o decreto-real pelo qual o avô do avô do avô de Dom Frederico, I Marquês de Enterra-Rainhas, tinha passado a ser sua excelência o senhor marquês que plantava altezas tinha sido escrito numa letra de bêbados tal que depois da primeira rainha morta
(a mãe do rei que assinou o decreto e daí o desatino todo coitado do rapaz)
quando foi a vez de falecer a jovem esposa do rei chegou-se à frente o primeiro marquês e disse
― Não não,
ao que o rei lhe pediu que se explicasse
― o que ficou estabelecido no papel é que eu enterrava rainhas, mas só daquelas que mandam, nunca na vida ficou concordado que eu ia andar por aí a semear cada mulher que o rei se lembrasse de trazer para casa,
o rei tinha-se noutro desatino semelhante e não lhe ocorreu responder nada
― daí que desculpa lá ó majestade,
(― Na nossa família sempre tratámos o rei por tu)
― mas não vai acontecer eu cavar seja o que for
e desde esse dia os marqueses continuaram com as terras e as fortunas e os privilégios e as coisas boas e tudo isto confortavelmente à espera que nunca calhasse outra vez de ser uma mulher a mandar
― E agora que vai ser do reino?
perguntou sua excelência o Massivamente Maçador, e agora pois então subia ao trono Dona Laura à falta de filhos homens
― ó merda,
o primo da Flandres todo desorientado com a agitação que se tinha posto, e pudera porque isto queria dizer
― ó valente caraças,
que havia agora uma mulher que mandava e que havia de ser preciso enterrar mais dia menos dia
― eu não posso fazer isso,
começou a estremer-se todo o Estupidamente Entorpecedor
― devo ter só da cintura para cima duas ou três complicações de saúde que me impeçam de enterrar pessoas,
a verdade é que nunca lhe tinha ocorrido que lhe ia cair uma rainha morta nas mãos, nem ao pai dele nem ao avô, desde que o primeiro marquês tinha aldrabado sua alteza da maneira que aldrabou
― nem respirar ao pé de mortos o meu médico me deve deixar, calha bem
e de repente Dom Frederico o Profundamente Pretensioso, conhecido em toda a alargação das suas terras pelas histórias cuja moral era que ele era melhor que toda a gente
― E a água que eu bebo também vem dum monte cujo nome não me recorda,
estava agora encolhido como nunca se o tinha visto
― mas há uma série de poetas que a mandam vir de lá também, ai como é que se chama o raio do monte?
porque dentro da cabeça pequenina de sua excelência o marquês não lembrava nenhuma maneira de ele se livrar disto, sendo que ainda nem a rapariga se tinha feito rainha e já havia desassossego que ela ia morrer
― E só para chatear vai morrer não tarda muito,
disse Dom Frederico o Filme Estrangeiro sem Legendas
― pronto e agora o que é que eu faço?
e era realmente uma boa pergunta, nem o moço fazia ideia nem o primo sabia ainda o que se passava, mas os factos eram desta maneira
― se ela morre, eu tenho de a enterrar,
o moço ia dizendo que sim
― portanto mandar matar sua alteza o raio da cachopa não ajuda
o moço ia dizendo que não
― pois não, e quanto muito até atrapalha, por isso outra linha de raciocínio
ouvia-se a cabeça de sua excelência a esfumegar-se toda
― o que era bem era ela não morrer nunca,
o moço ficou-se tão calado como o primo da Flandres
― é provável que isso aconteça?
perguntou Dom Frederico o Amplamente Aflito ao moço, que disse que não havia relatos na família real de gente que se tenha deixado viva para sempre
― merda,
reagiu assim o marquês
― OK vamos lá a ter calma então
soprou-se pela boca fora o Totalmente Transtornado, e o jeito que ele arranjou de ter calma foi imediatamente pegar-se num cavalo e abalar para o castelo, não só para chorar um bocadinho como é de lei que se faça mas também para ver de frente sua alteza a nova rainha e futura morta
― Ó Leonor os meus pêsames,
não se via a rapariga em lado nenhum
― a sério as minhas mais forçadas condolências,
ninguém sabia dela
― em meu nome e em nome da minha pessoa
em volta do castelo falava-se já da menina, meia dúzia de criados explicavam ao povo que quem mandava agora era Dona Laura a Muito Matulona, que vista de baixo parecia do tamanho de uma casa
― e a rapariga como é que está?
devia até ter havido qualquer espécie de atrapalhação quando foi de a fazer porque a rainha era mais bruta que muito homem e definitivamente mais bruta que o pai, Dona Leonor disse muito baixinho que a catraia estava de cama
(― ó merda)
que finou-se o pai e ela própria parece que se finou um bocadinho também, puseram a coroa na testa e ela nem meio ai, anda a chás coitada e a bolachas e já há quem diga que é capaz de não passar desta semana
(― ó merda)
por isso ainda bem que te puseste cá ó Frederico porque às tantas ainda calhas de aproveitar a viagem
― ó merda
disse alto desta vez o Inteiramente Atarantado, embaixador do reino mais do que uma vez quando era de ir para fora, pessoa que já bebeu de fontes pelo mundo adiante, conhecedor de vinhos de olhos fechados
― Este é dos bons
era competente a fama de Dom Frederico o Que Tem a Mania no que dizia respeito às coisas boas da vida
― não espera este é que é dos bons
dizia ele e fartava-se de o dizer que havendo uma razão para se caírem de espanto as pessoas todas e de pasmo já muito provavelmente ele tinha passado por lá primeiro
― mau agora é que é agora este é que é dos bons
e de facto à custa do título sua senhoria vivera a vida toda sem fazer nenhum, porque longe havia de estar o dia em que lhe chegasse a carta a dizer para desenterrar a pá porque havia uma alteza para emburacar
― a sério por que ordem é que me estão a dar os vinhos? pois se este ainda é mais maravilha que os outros
e ainda para mais já nem havia a pá real, que o pai de Dom Frederico havia perdido no meio de um fogo num dia em que se estava a jogar poker lá no palácio
― Deixa-te disso Leonor a moça é claro que se safa
mas pelo sim pelo não mal se teve fora do castelo foi ver Dom Frederico o Romance Histórico a desfazer-se por todas as casas de leis e a bater à porta de todos os conselheiros do reino, e a todos perguntava se
― Há alguma coisa em tudo o que há de mais pequenino nesse decreto que diga que eu não tenho de fazer isto?
até que o mais encarquilhado deles todos disse que sim, sua excelência o Veio-se Pelos Olhos imediatamente
― ó com um caraças como?
e explicou-lhe o sujeito que, segundo o decreto, a única condição em que o Marquês de Enterra-Rainhas estava desobrigado de sepultar a monarca era
― diga lá duma vez ó homem
na eventualidade de o Marquês desposar a rainha
― o que é que foi?
e só nessa condição, por respeito aos sentimentos do pobre esposo, se consentia que ele se livrasse daquela história toda da pá
― ó merda
pois, mas de resto nada mais o isenta, fechou o homem, e sua excelência mais angustiada o marquês de pronto se pôs de volta ao castelo
― Leonor chega-te aqui se não te importas,
no fundo era uma falta de respeito aos outros marqueses todos considerar-se sequer este cenário, onde é que já se tinha visto, mas a verdade é que nunca os pais prepararam os filhos para a eventualidade de se verem com uma rainha morta nas mãos, e o que é certo, pensava Dom Frederico, é que entre ter nas mãos uma rainha morta e uma viva mais vale ter uma viva e matá-la logo a seguir
― e se eu desposasse a Laura o que é que tu achas?
sempre se resolvem as coisas de uma maneira decente e assim ninguém fica a perder
― a sério o que eu apreciava desposar a rapariga hein que tal?
com a possível excepção da morta que ia acabar por morrer na mesma
― E eu já te disse de onde é que vêm as minhas árvores todas?
dois meses depois o mesmo primo da Flandres
― vêm todas do chão, ninguém as põe lá e de repente pás dez anos depois tens ali uma árvore toda cheia de folhas e tudo,
e pronto, talvez se tenha saltado aqui uma parte considerável da história mas a questão é que Dom Frederico o Extremamente Excruciante não se aguentava naquela situação nem sequer o tempo suficiente para a contar
― e os pássaros vêm do ar ou assim,
daí que foi casar e dois dias depois já ele se tinha viúvo à força de um chá de ervas, ferveu-lho pela garganta abaixo à sua alteza a agora viva e agora morta, dez minutos foi o tempo que levou a desgraçá-la toda por dentro, e foi também o tempo de espremer um choro emprestado para cima da cara e ir para o jardim ver a plantação
― o sol está sempre lá mais ou menos metade do tempo,
disseram os criados que a menina pegou bem, e um ou dois dias depois já estava Dom Frederico o Desafio de Futebol de volta ao palácio, um tio qualquer veio da França para se fazer rei
― até os reis mandam vir de França vê lá tu
e estava tudo de volta, os vinhos e essas coisas, até que lhe rasga pelos jardins um mensageiro, e de tal maneira vem o moço sem ar quase nenhum que Dom Frederico lhe pergunta
― que há?
e o que há são más notícias, diz o moço, principalmente porque em vez de dizer mais nada diz só
― Sua alteza finou-se
― O tio?
o moço ainda se falta todo de ares mas abana com a cabeça que sim
― o tio finou-se?
sim, disse o moço
― e agora que vai ser do reino?
perguntou sua excelência o Indescritivelmente Indigesto, e agora pois então parece que há uma prima
― ó merda.
RC