A Mário Cesariny,
Foi hoje, lembro muito bem porque apanhou toda a gente de espanto, foi hoje a manhã em que comprámos todos o jornal e na primeira página, em letras magistrais e paginação de início de guerra, ou de fim de guerra —de dia de uma coisa só—, vinha a fotografia dele, de um dos dias mais felizes, podia ser ontem, podia ser hoje não fosse o jornal de hoje também, e a legenda, em baixo, dizia em voz alta, berrada, Não morreu Fulano de Tal, a fotografia era a cores, e tinha sol, podia ser ontem, não podia ser hoje afinal porque hoje chove, o dia acordou de costas, e daí o espanto quando comprámos todos o jornal e Não morreu Fulano de Tal, e em letras mais pequenas, ditas ao ouvido, Está vivo, numa frase com nada de jornalístico, deve haver pensámos todos meia dúzia de livros de estilo que dizem que isto não se faz, Vive, continuavam as letras mais pequenas, porque hoje chove ninguém na rua sentíamos viver, e na segunda página, com honras ampliadas de tema de capa, continuava a notícia de que Fulano de Tal, escritor, poeta, contador de histórias, inventor de palavras, quase todas novas, mestre, céptico, director de companhia, produtor, encenador, dramaturgo, pai, cozinheiro, amante de vinhos, europeu, pintor, escultor, arquitecto, desenhador de esquina de rua, domador de leões, filho, utilizador de computadores, tecnófobo, mamífero, masturbador, ateu, agnóstico, crente, realizador, entrevistador, conversador, ciclista, pragmático, artista, célebre, vivo, não morreu ontem de doença nem se sabe aliás que tenha alguma, nem sofreu ou foi vítima de qualquer tipo de acidente durante o dia de ontem, e o texto desembrulhava-se que estava tudo bem com Fulano de Tal, que ao que tinha sido possível apurar Fulano de Tal tinha acordado à hora de todos os dias, e tinha feito o que tinha por hábito fazer todos os dias, escrevera também constava-se e confirmavam-no várias testemunhas oculares uma dezena duns poemas na toalha do restaurante, e esquissara alguém de uma mesa ao lado com uma posição de braços interessante, mas de resto tinha pago com uma nota amassada do bolso das calças —divergia-se aqui se tivera deixado o troco ou o levara consigo—, e saiu, continuadamente só, foi para casa escrever, foi para casa pintar, levantou o filho da escola com um beijo que lhe emprestou, e à hora do fecho desta edição supunha-se, continuava assim a notícia, com palavras tão pouco de notícia, que teria acabado o dia tão igualmente como o começou, ou então —arriscava o jornal— a escrever a próxima carta de amor a alguém que ainda não conhecia, trocámo-nos todos de espanto mais uma vez, a própria notícia escusava-se a pôr-se ponto final, Não morreu Fulano de Tal, diziam os títulos, policopiavam-se nas páginas seguintes rascunhos dos escritos do pintor e reproduções dos quadros do poeta, recolhiam-se depoimentos, primeiro o do Senhor Presidente da República, Em meu nome e em nome do meu povo, e pela sua vida e pela sua obra, congratulo-me que Fulano de Tal não tenha morrido hoje, dizia, e seguiam-se depois as palavras dos amigos, dizia um que É, sem dúvida nenhuma, o nosso definitivo homem de letras, e aliás é engraçado porque combinámos ir almoçar amanhã, dizia outro que O Fulano está numa fase criativa em que se melhora todos os dias, e todos os dias mais, por isso digo-lhe sempre que o prefiro ver amanhã em vez de hoje, e dizia ainda outro, pintor, que Um dos mais importantes quadros que há comprei-lho eu, e vamos pendurá-lo os dois um dia desta semana, e multiplicavam-se a cada página mais amigos, pessoas nas paragens do autocarro procuravam em vão os resumos do futebol, os horóscopos, as notícias dos acidentes e dos assaltos, havia no jornal nada disso, as páginas desdobravam-se de prosa, de desenhos, mas sobretudo de louvores e de homenagens, acabámos de ler o jornal e tinha deixado de chover, o sol acendia molhado os buracos do chão, e dobrámo-nos todos na rua com pessoas com livros nas mãos, com poemas nos cantos da boca, com esculturas de gesso guardadas na pele, e com o jornal enrolado nos bolsos do corpo, numa página perdida para o meio do jornal um dos amigos dizia, só, Lembraram-se de ti, não dizia mais nada, e numa esquina de rua qualquer ao ir para casa tropecei-lhe, estava Fulano de Tal sentado a tomar café com meio açúcar, e todos quantos lhe tropeçavam agradecíamos-lhe, e era só, foi hoje, lembro muito bem, foi hoje que Fulano de Tal evitou morrer, e conseguiu.
RC