(as perguntas foram retiradas das actas por se intuírem : sessão primeira)
DRAMATIS PERSONÆ
1 : Éramos, sim. Na altura eu teria dezassete, quase dezoito anos, e ela tinha acabado de fazer dezasseis. Namorávamos há mais ou menos três, quatro meses, não sei bem. Ela disse-me que estava grávida logo soube. Foi o que ela me disse. Ela disse que comprou um daqueles testes e que fez tudo sozinha e que, na altura em que me contou, mais ninguém sabia de nada. Depois disse-me que tinha contado à mãe. Não, eu não conhecia os pais da Mariana na altura. Exacto, conhecemo-nos depois. Pelo que ela me disse —e é só isso que sei dizer— a mãe tinha ficado até muito calma para o que ela esperava e teria-lhe prometido que a ajudava no que fosse preciso. Na altura eu estava a acabar a escola e ia começar a trabalhar. Não, não trabalhava. Ia trabalhar numa oficina que já me tinham prometido trabalho. Não sei, eu depois acabei por ir trabalhar para outro lado, mas por volta de quinhentos, seiscentos euros. Sim, a Mariana sabia disso tudo mesmo antes do que se passou. Ela ia acabar a escola também —acho que daí a dois ou três anos— mas queria continuar a estudar. Sim, chegámos a conversar sobre isso. Não sei dizer, nem ela sabia, acho eu, mas qualquer coisa de números. Ela na altura era boa aluna a números. Falou-se em ela ter de começar a trabalhar quando ela disse o que se passava. Ela não sabia o que fazer. Não, a principio não, nunca ela falou disso comigo. Só uns dias mais tarde é que isso apareceu. Sim, tenho que foi a mãe que lhe meteu isso na cabeça, mas a mãe disse-me sempre que não, e que não teve nada a ver com isso. Não sei, se quer que lhe diga não sei.
2 : A minha relação com a minha filha sempre foi muito boa. Eu nunca lhe escondi que também tinha feito mal e ela sabia disso e confiava em mim. Tenho trinta e quatro anos. Sim, tive a Mariana com dezasseis. Não, claro que não, então nós pouco sabíamos. Na altura o meu marido —casámos um ano depois— já trabalhava, e eu comecei a trabalhar mal a miúda começou a andar. Foram, foram anos difíceis. O meu pai pôs-me fora de casa, e a minha mãe tapou os ouvidos e foi enfiar-se no quarto. Nunca mais falei com o meu pai. A minha mãe veio uma vez ver a Mariana e depois também nunca mais a vi. Uma tia, quem me ajudou nos primeiros tempos foi uma tia, irmã da minha mãe, mas depois também deixou de me falar. Sim, a família do meu marido é que nos segurou, e uma irmã dele, mais velha. Ele tinha vinte, vinte e um anos na altura. Não, eu nunca disse nada disso à Mariana. Pensei, mas nunca disse. Era o melhor que ela tinha a fazer, sem dúvida nenhuma, mas nunca lhe disse nada. Porque ela ia estragar a vida dela. Não foi isso que eu disse, eu nunca disse que a Mariana me estragou a vida, e principalmente nunca lho disse a ela. Às vezes, sim, às vezes penso no que podia ter feito se não a tivesse tido. Sim, eu cheguei a pensar nisso. Ninguém. A minha cunhada. Sim, foi ela que me disse que desmanchasse. Disse-me que havia uma parteira no bairro que tratava desse tipo de coisas, e toda a gente sabia o que ela fazia e ninguém fazia queixa de nada. A minha cunhada disse-me que se arranjava tudo, que se marcava o desmancho e que numa manhã ficava feito. Nunca me disse, mas sim. Chegámos a falar disso algumas vezes, sim, ela teimava que era o melhor tanto para o irmão como para mim, e que se acabavam logo uma série de problemas. Não sei, devia estar de três, quatro meses, por aí. Cheguei, já lhe disse que sim. Por causa do meu marido, foi por causa dele que não desmanchei. Ele dizia que tudo se havia de resolver e que ele trabalhava mais o que fosse preciso e que nunca pensasse sequer nisso. Marcámos, melhor, a minha cunhada marcou. Não consegui. Fui, fui lá mas não consegui.
3 : Não sei, só cerca de uma semana depois é que soube. Foi, foi a minha filha que me disse. Contou-me que tinha falado com a mãe. Não, a minha mulher não me tinha dito nada. Gritei-lhe, quando me contou gritei-lhe. Disse-lhe, não sei, disparates, o me ocorreu. Depois fui falar com ela, nessa noite, e disse-lhe que estava tudo bem, que podia contar connosco. Estava, eu estava disposto a ajudar no que fosse preciso, tanto eu como a mãe dela estávamos completamente prontos a fazer o que fosse preciso. Não, só o conhecemos depois, a Mariana achou melhor não o levar lá. Percebo perfeitamente. Não, acho que nunca pus mais culpas no garoto do que na minha filha, talvez, não sei, talvez ele devesse saber melhor. Não posso falar, não sei, isso ela nunca me disse. Não sei, mesmo. Não, tudo o que ela me disse —ela estava muito confusa, atrapalhada— foi que não sabia o que fazer. Ela costumava vir a mim quando não sabia o que fazer. Sim. Ela disse que queria continuar a estudar mas que agora já não sabia como é que isso ia ser, se ia trabalhar ou se ia deixar a escola e voltar mais tarde, não sei, nem ela sabia nem eu sabia, sinceramente, o que lhe dizer. Ela sempre quis fazer qualquer coisa de contabilidades, negócios, esse tipo de estudos. Eu queria que ela continuasse a estudar. Não, mas nunca lho disse. Sim, foi ela, foi ela que falou primeiro em poder abortar. Não acho que ela tenha falado disso com a mãe, não. Com o garoto, sim, mas com a mãe não. Não sei porque terá ela vindo falar disso antes comigo. Na altura acho que não lhe disse nada, acho que fiquei sem saber o que dizer. Não, nunca mais falámos sobre isso.
(sessão segunda)
2 : Eu nunca lhe disse que desmanchasse. Pensei, pensei nisso mais do que uma vez, estive quase para lhe dizer isso de uma das alturas, mas não. Porque me lembrei da parteira do bairro, sei lá, porque me lembrei do sofá em casa da parteira. Ela tinha um sofá numa sala, a primeira sala onde entrámos, e a sala tinha só um sofá, encostado a uma parede, e lembro-me de um crucifixo de madeira pregado na parede. Não acho que tivesse mais nada, não me lembro bem mas acho que era isto que disse. Via-se bem quando se entrava na casa que ao lado desta sala que falei agora havia outra sala, com um bom sofá e uma boa mesa, que era a sala em condições onde a parteira comia e, pronto, fazia vida. Essa sala boa tinha a porta fechada, e de resto a casa toda era breu, completo, todas as janelas estavam de persianas corridas. Havia, lembro-me agora, uma lâmpada nessa tal sala só pendurada do tecto, mais nada. Cheguei a sentar-me nesse sofá durante, não sei, cinco, dez minutos. A parteira estava, disse-me a minha cunhada, a ferver panelões de água. Eu estava lá à espera com a minha cunhada, que me foi contando como é que aquilo se fazia. Portanto, os desmanchos eram feitos num outro quarto, e as mulheres eram levadas para lá onde a parteira desfazia o bebé, e isso dependia de quantos meses estivesse cada mulher, mas o sistema parece-me que devia ser o mesmo para todas, eu sinceramente fiz por me esquecer e preferia até não ter de falar disso, se isso não se importar. Depois, disse-me a minha cunhada, as mulheres voltavam para a sala do sofá, para se deitarem. Por causa do desmancho, sim, e por causa de qualquer sangramento que pudesse ainda acontecer por via do desmancho. Só quando ela me disse isso é que eu entendi por que via estava o sofá todo manchado. Tinha várias nódoas de sangue. Sim, sangue seco. Algumas delas tinham sido —notava-se que tinham sido— esfregadas com sabão, e notava-se até o desbotado no pano, mas outras não, outras tinham ficado, tinham secado e assim ficaram. Foi aí que eu não consegui mais e foi aí que me levantei e saí dali para fora.
1 : Disse, disse tudo aos meus pais e eles disseram que ajudavam no que pudessem ajudar. Sim, conheciam-na, cheguei a levá-la a minha casa uma ou duas vezes antes disto. Eles ficaram como ficámos todos. Não, para falar muito a sério nunca ninguém chegou a pensar que ela fosse com isso para a frente. Foi, foi um abalo para os pais e foi um abalo para mim, claro que foi. Não, não acho que ela tenha pensado bem no que ia fazer. Acho que ela falou com duas ou três amigas lá da escola. Não sei quem são, nunca as conheci. Não me parece que tenham sido elas a enfiar-lhe isso na ideia, não, tenho para mim, como já disse, que foi ou a mãe, ou então alguém da família. Exacto, nunca a ouvi falar disso nos primeiros dias, mas a partir de uma certa altura começou a dizer que era a única solução, que levar o filho até ao fim a ia tirar da escola, que nunca mais ia poder estudar como sempre disse que queria, a partir de certa altura de cada vez que falava só dizia esse tipo de coisas. É o que eu acho, alguém lhe meteu aquelas ideias na cabeça de tal maneira que ela não conseguia pensar em mais nada. Tentei, tentei várias vezes tirar-lhe isso da ideia. Porque me fazia impressão, não sei, porque me parecia mal feito. Mas também sempre lhe disse que se era isso que ela queria fazer que estava com ela a cem por cento, e que apoiava o que quer que fosse que lhe parecesse bem. Eu dizia-lhe sempre o que me parecia que ela queria ouvir. Porque sentia que não podia fazer mais nada senão isso. Se ela se achava cada vez mais sozinha à medida que passava o tempo —não sei quem lhe disse isso, ela a mim nunca me disse nada— não foi concerteza por minha culpa, que fiz tudo o que podia como podia. Eu fiz o que pude. Não, não acho que ela conseguisse —que conseguisse não, que se atirasse a— decidir isso de vez sozinha. Não, a Mariana não. Era uma criança. A Mariana era uma criança.
(sessão terceira)
2 : Não podia, não podia dizer à minha filha que desmanchasse se tudo isso ainda são parteiras e sofás sangrados, não podia, nunca podia, assim nunca podia. Ela começou a falar disso, alguns dias depois de me ter contado, e eu nunca cheguei a saber de onde tirou ela isso, se foi do rapaz ou de onde foi, ou das colegas, mas de mim está claro que não foi. Eu sabia que não podia dizer-lhe que fizesse isso e vê-se nítido porquê. O meu marido viu-se muito em baixo quando isto aconteceu, até mais do que eu nos dias logo a seguir, mas depois tem sido ele que me tem segurado. Não sei, ele é menos rijo que eu, porventura. Mas se calhar —muito quase de certeza— por causa da irmã. A irmã do meu marido, a minha cunhada, foi por causa de um desmancho que morreu. Não sei o que se passou, nunca chegámos a saber o que se tinha passado, telefona-nos a parteira um dia que lhe fôssemos a casa, chegámos lá estava ela esvaída em sangue, disse a parteira que foram complicações, que já não era o primeiro que ela fazia e que isto não eram coisas para se fazerem todos os dias. Chamou-se uma ambulância, a parteira disse-lhes o que tinha para lhes dizer, e certo é que nada se ficou a saber, todo o bairro até hoje julga que foi um acidente qualquer de rua e assim fizeram os médicos e assim ficaram os polícias. Não, ninguém sabia disto, a não ser eu e o meu marido, e é certo que a Mariana não sabia disto. Por mim não sabia, e pelo pai também não. Sim, acho que o rapaz tem razão, ela sozinha não se metia a fazer isto. Alguém —é o que lhe digo— alguém ou alguma coisa lhe meteu isto na ideia. Eu não fui. Pelas minhas santas se fui eu.
3 : A minha irmã morreu numa passadeira. Estava a atravessar uma rua —não sei precisar qual, vai-me desculpar— e passa-lhe um carro por cima. Foi isto mesmo como acabei de contar. Vi a minha filha nesse dia de manhã. Sim, vinte e dois de agosto. Nada de estranho, saí de casa cedo para ir trabalhar e ela ficou em casa. Sim, sozinha. Não sei, isso não sei dizer, talvez três meses, por volta de três meses. Ela contou-nos três semanas, se calhar um mês antes. Fui eu que cheguei a casa primeiro. Eram cerca de cinco, cinco e meia. Sim, fui eu que a encontrei. Quando entrei em casa ouvi uma torneira a correr, e fui ver onde era. Na casa de banho. Encontrei a Mariana dentro da banheira, desmaiada, e a sangrar. Muito. Não consegui ver, na altura não consegui ver bem, pareciam espetos ou qualquer coisa desse tipo. Os médicos disseram depois que eram agulhas, duas agulhas a que ela —julgamos nós que ela— cortou as pontas com um alicate. Chamei uma ambulância, imediatamente, tentei ainda ver se a conseguia acordar mas não consegui. A minha mulher chegou quando os paramédicos estavam a chegar também. Não, ela já não a viu lá. Eu senti-me, não sei como dizer, vazio. Sim, vazio. Não estou a perceber o que quer dizer. Não, eu não menti sobre a morte da minha irmã. Eu não tenho, como compreende, nada a ver com qualquer testemunho da minha mulher, o que eu disse aqui foi a verdade e a única verdade que existe. Não sei por que razão haveria ela de inventar uma história dessas. Não, nunca eu disse à minha filha que abortasse. Não sei quem terá dito, provavelmente o garoto. A única coisa que eu lhe disse foi que só tivesse o filho se quisesse. Sim, talvez lhe tenha dito que só tivesse o filho se quisesse estragar a vida duma vez, sim, disse-lhe isso. Não consegui, não conseguia nunca ver a minha criança com outra nas mãos, sem lhe saber pegar, sem saber o que lhe fazer. Talvez lhe tenha metido na cabeça que abortasse, sim, talvez tenha sido eu. Fui eu, concerteza fui eu, mas nunca pensei que fosse com isso para a frente. Nunca pensei que ela se enfiasse de agulhas e que se desfizesse criança outra vez. Nunca a julguei capaz, a minha criança nunca. Fui eu, a minha criança nunca.
RC